Entre convergências e divergências: ciclo de debates abordou relações entre mulheres, feminismos e agroecologia

“O corpo da mulher é um território e esse território precisa ter saúde física e mental. Se a mulher fica doente, o território todo adoece, pois é ela que ajuda a cuidar dele. Por isso precisamos ter nosso território vivo, para poder plantar nosso alimento sem veneno, porque com o uso do veneno nós e o território morremos.” (Dona Lucimar, Aldeia Velha, do município de Pirapemas-MA)

A gente entende que a ciência está na academia mas também fora dela, por isso nosso corpo é composto por pesquisadoras, estudantes, professoras, extensionistas – mulheres camponesas, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, pescadoras, artesãs, mulheres todas, das cidades, dos campos, das águas e das florestas (grifo nosso).  Estas são palavras de Vivian Delfino Motta, professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e co-coordenadora do GT Mulheres da ABA-Agroecologia. Abrindo março, o mês que celebra a luta das mulheres. Na manhã da última quinta-feira, dia 04, deu-se o início da primeira atividade de um ciclo de quatro encontros, realizados nos dias 04 e 05 do evento “Convergências e Divergências: Mulheres, Feminismos e Agroecologia”.

Organizado pela Associação Brasileira de Agroecologia/ABA-Agroecologia, o encontro teve como objetivo criar um espaço de conversa, acolhimento e partilha para ampliar a compreensão da importância fundamental do feminismo e do antirracismo na construção da Agroecologia. Com mais de 17 anos de história, a ABA celebra 10 anos de atividades realizadas de, para e com as mulheres. A proposta do GT Mulheres da ABA foi criar espaços para debater e aprofundar as reflexões acerca da interseccionalidade gênero, raça/etnia e classe e assim disparar processos que viabilizem o pensar-agir-transformar  nos diferentes espaços ocupados por essas e outras mulheres.

Movimentos sociais e a luta das mulheres rurais

A noite não adormecerá jamais nos olhos das fêmeas pois do nosso sangue-mulher, de nosso líquido lembradiço, em cada gota que jorra um fio invisível e tônico pacientemente cose a rede da nossa milenar existência.”

“É com a resistência das palavras de Conceição Evaristo, ela sendo a síntese da diversidade de mulheres que este país tem, inclusive uma das mais belas sínteses que se tem registro, que aqui das bandas do sertão da Bahia, já agradeço a todas as mulheres da ABA-Agroecologia por seguir abrindo as porteiras para as camponesas e para toda diversidade étnica, racial, regional, geracional e de gênero e, tantas identidades que brotam nos territórios em luta. Na força da construção coletiva, dos saberes populares e da força da luta das mulheres dos movimentos sociais,” destacou Leila Santana do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) ao iniciar sua fala.

Para Leila, especialmente no contexto atual, é preciso compartilhar caminhos, semear ideias, rebeldias e ações para perceber outros caminhos. Não há receita de bolo, mas a partir das trajetórias, estradas e experiências da luta traçada pelas camponesas do MPA é possível apontar duas estradas, “construir simultaneamente um trabalho político e um projeto educativo pedagógico, com homens e mulheres – separadamente – mas que se alinhem num espaço comum, para enfrentar as nossas próprias contradições – do sistema capitalista – em cada tempo e contexto”.

Ainda segunda Leila, é importante recolocar algumas reflexões que demarcam os desafios da luta camponesa, “uma primeira é que a luta feminista é uma luta da diversidade de mulheres que foi oprimida, subalternizada e explorada e se erguem em resistência para construção de outras bases de relações sociais. E que, necessariamente, essa reconstrução deve ser profunda para construção de novas relações, de enfrentamento e de visibilidade das desigualdades estruturantes. A luta de classe precisa ser (re)colocada dentro da profundidade e da desigualdade racial e de gênero. A segunda, é que a luta feminista não pode ser cooptada como uma luta da modernidade mercadológica mas sim uma luta estrutural que no seu princípio luta contra as opressões homogeinizadas dessa sociedade capitalista e imperialista”.  

“O rosto da fome e da desigualdade é um rosto feminino e se a gente for olhar mais fundo, é um rosto feminino e negro.” Leila Santana

Trazendo para o contexto atual, é fato que os impactos causados pela pandemia da Covid-19 à vida de milhares de pessoas e que agravaram questões relacionadas à Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional/SSAN, por exemplo, é importante refletirmos sobre a vida das mulheres que produzem alimentos. Mulheres, guardiãs de sementes e saberes que protagonizam a resistência dos povos e territórios a partir também da produção de alimentos. De acordo com o IBGE, as mulheres podem ser consideradas o grupo social mais afetado pela pandemia do novo coronavírus, por constituírem o grupo majoritário dos empregos mais precários ou informais, estando obrigadas a voltar-se às tarefas do cuidado da casa, da economia doméstica e ainda de forma mais intensa aos cuidados dos filhos, das pessoas idosas (pai e mãe) e ainda lhe é demandada a tarefa de prezar pela saúde de todos e todas.

Para o movimento de mulheres do MPA, afirmar a agroecologia no chão do território como um instrumento potente de enfrentamento às múltiplas e diversas lutas – que se atravessam na luta pela terra – aparece como estratégia de superação dos desafios. O desafio feminista é parte de qualquer organização. Segundo Leila, “a maior coerência de um processo de organização é firmar o passo!”.

“O terreiro das mulheres é fazer a agroecologia seguir o legado de tantas bruxas.” Leila Santana

Do terreiro de casa no Rio Grande do Sul-RS, a camponesa e mestra em agroecologia, Rosiele Ludtke também do MPA, relembra que numa região historicamente marcada pelo enraizamento das práticas patriarcais e do machismo a estratégia usada para se debater com as mulheres o tema do feminismo foi a agroecologia, a partir das oficinas de uso de plantas e ervas medicinais e da produção de sabonetes artesanais. “No momento que começamos a trabalhar a gente não tinha dimensão de que isso se tornaria um fator mobilizador e que isso ia massificar a participação das mulheres no nosso movimento aqui no estado do RS. Se a gente fosse chamá-las para um curso sobre gênero, elas não iriam”, complementou. 

Para a realidade de Linalva Cunha, educadora popular da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Maranhão-MA, o debate do feminismo que tem sido construído com as mulheres nas comunidades recebe outro nome, mas o mais importante, é que essas mulheres têm conseguido compreender as relações que estão sendo colocadas com o todo. “Para alguns dos grupos de mulheres que nós acompanhamos, o espaço onde se discute sobre violência doméstica é no mutirão da quebra do coco babaçu a partir de conversas triviais”, afirmou.

“E essas situações com as mulheres têm surgido quando a gente traz para discussão a defesa do território físico e espiritual, porque elas têm nos dito que não dá para fazer a defesa do território sem pensar nesse pedaço de chão e sem pensar nessa relação espiritual. E tem uma relação extremamente simbiótica que é ratificada através do modo de fazer, de criar e de viver dessas comunidades. Elas vão nos dizendo como que isso acontece e, consequentemente elas vão nos dizendo como fazer agroecologia. É o modo de plantar, de colher, de preparar, de criar (espaços para si e para partilhar), bem como de acolher os diversos debates sobre os direitos na busca pelo Bem viver. É a conexão com a natureza. Elas fazem agroecologia quando fazem a defesa dos igarapés, das nascentes ou quando elas pedem licença pra entrar num riacho, quando elas se benzem diante de uma árvore centenária, elas vão construindo esses saberes compreendendo que o que elas fazem não é só defender o território, não é só a conexão com a natureza, é ancestralidade, é pertencimento e identidade”, contextualizou Linalva.

“(…) elas têm nos dito que não dá para fazer a defesa do território sem pensar nesse pedaço de chão e sem pensar nessa relação espiritual.” Linalva Cunha

Refletir sobre o movimento das mulheres é ter que falar sobre resistência, força. É pensar o novo, o futuro da sua prole, mas também da natureza. É incansavelmente refletir-agir-transformar as diversas redes e práticas de cuidado com a vida e a saúde dos territórios. É pensar sobre um conjunto de identidades que luta por direitos, protagonismo, por geração de renda e por um projeto de sociedade feminista e antirracista. Identidades múltiplas que têm transformado a relação com os sistemas agroalimentares. É ter que ressignificar o lugar da cozinha e reverter toda uma estrutura de invisibilidade e violência.

Avanços e retrocessos na construção da agroecologia feminista e antirracista

“Eu sempre falo e sempre irei falar que é feminismos no plural porque nós somos amplas, múltiplas e cada uma dentro do seu território, dentro das suas especificidades a gente precisa pontuar e marcar a nossa diversidade.” Luana Brito

Da Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDESSAN), para a estudante de ciências sociais Luana Brito, dependendo do lugar de onde você está inserida, a agroecologia às vezes chega como uma visão ainda muito embranquecida. “Quem são de fato essas pessoas que estão aparecendo nesses espaços? Então a gente ainda precisa falar de gênero, de raça e de classe sim”, comentou. 

Para Elisa Pankararu, a relação da agroecologia com o feminismo é no sentido de propor igualdade de direitos, e não apenas entre homens e mulheres, mas igualdade de direitos humanos entre as pessoas. E essa proposição de igualdade de direitos confronta a relação que o agronegócio tem com o machismo e da relação que este, por sua vez tem, com o racismo e o patriarcado. “O meu lugar de fala em princípio é o meu povo, é o território que me traz, mas não só traz a Elisa, sozinha, que traz consigo a história de meus antepassados como também da minha descendência dos que estão e dos que virão”, complementou. 

Elisa é descendente do povo indígena Pankararu, mestra em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA/UFPE). Para ela, as mulheres indígenas são guardiãs e detentoras dos saberes tradicionais. Isso faz com que haja essa relação com a agroecologia. “Quando eu falo do território eu não estou apenas falando de uma extensão de terra, eu estou falando de um espaço sagrado onde vivem seres humanos e outros seres também, visíveis e invisíveis, árvores, água, pedras, serras, rios, riachos, plantas… e na história do meu povo esse território é também morada dos meus antepassados, dos meus seres sagrados, que também são seres femininos”, relatou.  

“(…) na história do meu povo esse território é também morada dos meus antepassados, dos meus seres sagrados, que também são seres femininos” Elisa Pankararu

Desse modo, é preciso então refletir sobre as ameaças e as violações que estão colocadas nos territórios sob a perspectiva do avanço das práticas do agronegócio e da agricultura do veneno, da mineração e dos grandes empreendimentos, entre outros. Conforme pontua Elisa, “dessa cultura que invade, que viola nossos sistemas, que é estranha aos nossos modos de vida, que adoece nosso sistema de harmonia. Essa cultura que traz consigo o seu machismo, o seu racismo, o seu patriarcado e que não violenta somente as nossas mulheres e meninas mas também os nossos homens”.

“Salve Berta Cárcere! Salve Dandara dos Palmares! Salve Comandanta Ramona! Salve Lelia Gonzalez! Salve Margarida Alves! ¡Salve Vanete Almeida! Las abuelas de la plaza de mayo, las madres. As nossas mães de santo, as indígenas e todas as mulheres de terreiro. Salve a Jurema Sagrada! Salve todas as mulheres que resistem, lutam e constroem esse Bem Viver”. Laeticia Jalil

Nos perguntamos então, quais são as convergências e/ou divergências entre os feminismos e a agroecologia? Quais as lutas que marcam as trajetórias das mulheres na agroecologia? Qual o papel das mulheres na agroecologia? Para Laeticia Jalil, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), “se temos novas perguntas, temos que respondê-las a partir de novas formas, por isso experimentar. A ideia da experiência como um exercício cotidiano em fazer, colocar em prática, experimentar,  provar, testar, se permitir fazer e errar, sentir, tentar fazer de novo a partir de novas práticas, de pesquisa e de relações sociais. A partir desse aprendizado coletivo que considera a aposta no processo mais do que nos produtos. Acreditamos que todo conhecimento é situado, todo fazer e saber é importante quando leva a emancipação, a autonomia e a liberdade”, afirmou. 

Segundo Laeticia, um primeiro exercício coletivo que o movimento das mulheres vêm fazendo e que também é um princípio, é o questionamento à hierarquização dos saberes. E afirma, “o reconhecimento e a afirmação de que o que sabemos é importante e que todo conhecimento é de ordem distinta de saberes, que todo ele tem valor e é fundamental para a vida. Todo conhecimento, seja acadêmico ou empírico, seja das práticas cotidianas ou científico-tecnicista é vivenciado nos corpos e nos sentidos mais tênues de nós mulheres. Todos eles são indispensáveis para a reprodução da vida. E esse exercício feminista de nos enxergar como iguais, porém distintas, possibilita a construção coletiva do conhecimento ou a construção do conhecimento coletivo, como um processo social e político, transgressor, antipatriarcal, feminista, anticapitalista e antirracista”.

“Todo conhecimento, todo fazer e saber é importante quando leva a emancipação, a autonomia e a liberdade” Laeticia Jalil

Entre narrativas, reflexões e provocações as mulheres seguem afirmando que é preciso criar novos conceitos para a agroecologia, novas histórias e novas formas de fazer. E seguem nos provocando: Onde está a reparação histórica da agroecologia? Como que essa agroecologia feminista e antirrascista me permite ter e contar uma outra história? E vai permitir para quem vem depois o mesmo. Como fazer com que esse sistema conte outra história?

“Nós todas estamos aqui porque nós acreditamos num mundo diferente. E a gente sabe que esse mundo não é pra nós. Não foi para nossas ancestrais e não é para quem a gente vai deixar aqui, seja nossos filhos ou nossas filhas, seja quem for. Só que nesse mundo foi construída uma história e essa história nos marca de formas diferentes. A história não é contada da mesma forma! Eu vivo essa história até hoje. Então, a história me deve e eu quero. Eu tenho direito de querer outra história!”, acentuou Vivian Delfino. 

“Como a gente constrói uma agroecologia e conceitos de uma agroecologia que nos permita outra forma de nos enxergar no mundo?”

O GT Mulheres da ABA-Agroecologia, iniciou as discussões no mês de março ressaltando que o fazer das mulheres é coletivo e essa certeza possibilitou a realização desse evento. A rede formada por muitas entidades feministas foi fundamental para que as rodas de conversa chegassem a diversos lugares do Brasil e da América Latina y Caribe. Então, o GT Mulheres agradece a Sempreviva Organização Feminista (SOF), ao Núcleo de Estudos Jurema (UFRPE), ao GT de Mulheres da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), as mulheres do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), ao Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), a Alianza de Mujeres en Agroecología (AMA-AWA) e  especialmente as mulheres da ABA, que valorizando a sua diversidade constroem e fortalecem a agroecologia a partir da luta por uma outra ciência. Juntas dizemos: SEM FEMINISMOS NÃO HÁ AGROECOLOGIA!

Sem arte não há vida e sem vida não há agroecologia. A luta feminista é também calcada na arte, assim agradecemos as artistas  que cantaram e esperançaram esse evento: Lila Borges (@lilaborgesmusica); Julia Mendes Selles (Deusas do Cerrado) e Sirlei Gaspareto (@mmcnacional).

Outras informações: Segue aberta a chamada para envio de ensaios inéditos que problematizam e discutem questões relacionadas ao evento online Convergências e divergências: Mulheres, Feminismos e Agroecologia. Busca-se reunir ensaios teóricos inéditos e inovadores construídos a partir da discussão interseccional de raça, gênero e classe na agroecologia em que a temática feminista seja central, refletindo novas formas de pesquisar e produzir, a serem publicados pela publicação Cadernos de Agroecologia (ISSN:2236-7934). Acesse e saiba mais!

Transcrição e textos: Giuseppe Bandeira

Assessoria de Comunicação ABA-Agroecologia

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *