Memórias e Resistências: a Teia dos Pontos de Cultura e Memória Rurais

I Encontro Nacional dos Pontos de Cultura e Memórias Rurais colore a região Serrana do Rio de Janeiro e propõe ações articuladas em defesa das políticas culturais para os territórios rurais

Por Marjorie Botelho (Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais) e 

Natália Almeida (ABA-Agroecologia)
Foto: Leandro Anton – Quilombo do Sopapo
A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” Eduardo Galeano

Sotaques, ritmos, cores e cantigas diferentes, uma mostra da diversidade cultural do povo brasileiro. Esse foi o tom do I Encontro Nacional dos Pontos de Cultura e Memórias Rurais, realizado de 9 a 12 de agosto em Santo Antônio, distrito rural de Bom Jardim, na região Serrana do Rio de Janeiro.

O encontro fez parte de um ciclo de atividades que estão sendo realizadas com organizações de cultura que integram a Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais. Entre os motivos que embalam esse processo está a construção de um documento que possibilite traçar um “estado da arte” das políticas públicas de cultura a partir de contextos diversos, políticos e socioculturais, dos quais as organizações de cultura que atuam em áreas rurais estão inseridos. Pretende-se desta forma contribuir para a construção de políticas culturais que considerem a realidade dos territórios rurais.

Não é difícil perceber que historicamente as políticas públicas de cultura estão concentradas nas grandes metrópoles e centros urbanos ou são elaboradas levando em consideração a realidade urbana. A ausência de políticas de cultura para os territórios rurais pode ser verificada no orçamento destinado ao fomento à cultura para estas localidades e também nas pesquisas que, ao analisarem a quantidade de equipamentos culturais nos estados e municípios, revelam que a distribuição destes equipamentos pelo país segue a lógica de ocupação desigual do território e expressa as suas desigualdades socioeconômicas.

Se para transformar uma realidade é necessário anteriormente conhecê-la, como aponta Galeano, subsidiar e qualificar a elaboração de políticas públicas de cultura para os territórios rurais é o principal horizonte do documento, previsto como produto coletivo dos encontros envolvendo a Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais que atua na defesa da Lei Cultura Viva desde suas raízes mais profundas.

Atualmente a Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais é composta por organizações distribuídas pelas cinco regiões do país. São organizações que foram reconhecidas pelo Ministério da Cultura como pontos de cultura e/ou pelo Instituto Brasileiro de Museus como ponto de memória, e que atuam com diferentes linguagens artísticas e culturais, atendendo povos do campo, das florestas e das águas. Na última Teia em Natal, em 2014, vários pontos de cultura e de memória constituíram o grupo de trabalho dos pontos de cultura rurais na Comissão Nacional de Pontos de Cultura e criaram a Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais. A criação destes espaços tinha como objetivo pressionar o governo para que implementasse políticas públicas de cultura voltadas para os territórios rurais, explica Claudio Paolino, coordenador do Ecomuseu Rural, um ponto de cultura rural que atua na área da museologia social, agroecologia e do turismo rural, localizado na comunidade rural de Santo Antônio, que integra a rede e recebe este e as próximas edições dos encontros nacionais.

A programação do encontro foi planejada com a intenção de circular pela diversidade de contextos das áreas rurais do país tendo como perspectiva a elaboração de políticas públicas de cultura voltada para esses territórios. A maioria das organizações possui espaços educativos de cultura, atuando como equipamentos culturais e/ou como escolas não formais, cumprindo assim um importante papel na garantia do direito à cultura, na valorização e preservação dos saberes e fazeres presentes nos territórios rurais e no desenvolvimento que prioriza a identidade cultural presente nas áreas rurais. Na maioria das vezes, são uma das poucas alternativas de acesso, fruição e produção cultural nas comunidades onde atuam.

Territórios de Resistências Culturais

Para muitas famílias brasileiras, sonhar não é um direito. Marcadas por muitos desafios cotidianos, famílias repetem às crianças que, para os pobres, não há espaço para sonhos, apenas para as necessidades. Nossas experiências são permeadas por re-encantamentos, pois é preciso recuperar essa possibilidade de sonhar, cultivar outras formas de ser e estar no mundo”. Penhinha do Ponto de Cultura Rural “Olho do Tempo” de João Pessoa (PB)

Foram muitos os relatos, projetos e ações compartilhados pelos pontos rurais que atuam em comunidades ameaçadas pelos grandes empreendimentos, pela paralisia na demarcação das terras quilombolas, indígenas e dos assentamentos da reforma agrária, pela ampliação do agronegócio, pela ausência de políticas de cultura e  pelo fechamento de escolas do campo, além do avanço desenfreado das cidades a partir da especulação imobiliária. Mesmo diante de tantas ameaças a cultura viva pulsa nos territórios rurais, reafirmando o seu lugar de resistência.

Na programação do encontro, entre as muitas atividades culturais e de articulação dos elos dessa rede, aconteceram rodas de conversa que propiciaram uma imersão pela cultura na sua dimensão simbólica, cidadã e econômica. A roda de conversa sobre o Programa Cultura Viva, criado pelo Ministério da Cultura, durante o governo do presidente Luís Inácio da Silva, na gestão do Gilberto Gil, foi tema de destaque.  O programa passou a ser política de estado em 2014 quando instituiu a Política Nacional de Cultura Viva sancionada na Lei 13.018. Ao longo deste últimos anos reconheceu diversas organizações que desenvolviam ações culturais em seus territórios, inaugurando a mais importante política cultural de base comunitária no país, que influenciou quase toda a América Latina.

A roda de conversa sobre territórios rurais e seus diálogos com a juventude rural foi mediada pela professora Maria José Carneiro e pela doutoranda Luiza Dulci, ambas do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, além da troca de experiência com o Grupo de Trabalho “Cultura e Comunicação” vinculado à Associação Brasileira de Agroecologia, que problematizaram o lugar do rural a partir das relações que se estabelece com a terra e com as políticas públicas para o campo.  A roda sobre políticas públicas de cultura contou com a participação do Professor Luiz Augusto Rodrigues, da Pós-Graduação em Cultura e Territorialidade, e de João Pontes, assessor na Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, que reafirmaram a importância da elaboração de pesquisas e políticas de cultura para os territórios rurais.

Muitos pontos de cultura rurais fazem o diálogo entre cultura e turismo, por isso, a roda que abordou as práticas de turismo de base comunitária trouxe diferentes experiências, tendo a participação da Rede Tucum (CE) e das iniciativas articuladas pelas comunidades do Jalapão (TO) como fontes inspiradoras para a geração de renda de forma autônoma, respeitando a dinâmica dos povos que vivem nos territórios rurais.

Além das rodas de conversa, dinâmicas e partilhas, a programação do Encontro contou com o lançamento na Ecoarte do livro “Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina”, de Alexandre Santini, que analisa a história das políticas culturais desenvolvidas no Brasil no século XX e nas primeiras décadas do século XXI, reconstituindo a linha do tempo da Cultura Viva Comunitária, e de como os Pontos de Cultura e o Programa Cultura Viva inspiraram e contribuíram no desenvolvimento de políticas públicas na América Latina.

Cultura Popular e a Identidade Rural

Por fim, Maria Luiza Borba apresentou as ações do Ponto de Cultura “Tesouros da Terra”, mais um exemplo de como essa rede extensa de Pontos de Cultura atua no registro e reconhecimento dos saberes e fazeres dos territórios rurais. Entre as várias produções e atividades realizadas pelo Ponto de Cultura localizado em Lumiar, distrito vizinho à Santo Antônio, também região Serrana do Rio, está a publicação “Tesouros: Nossa gente da Terra”. O livro e as ações desenvolvidas pela equipe de Lumiar registram o acervo imaterial desse distrito do município de Nova Friburgo. Através da oralidade, a memória cultural e o conhecimento tradicional do território é retratado no uso de rezas, plantas medicinais, nas danças, entre outras práticas comunitárias.

Histórias de vida atravessadas pela construção de políticas públicas culturais nos territórios rurais foi o tom deste primeiro encontro. A Agroecologia e a Educação Popular também foram alicerces dos diálogos e apontaram possibilidades de parceria entre as Redes dos Pontos de Cultura e Memória Rurais e outras iniciativas que articulam resistências nos territórios. Valorizar nossa ancestralidade, nossa memória e nossa história, em tempos políticos marcados por tristes e severas perdas, como no dia 2/9, no incêndio de parte do Museu Nacional, é exercício cotidiano dessa Rede que segue, assim como a primavera e as flores do Cerrado, voltando a florescer mesmo nas cinzas.

Para saber mais sobre a Rede Nacional de Pontos de  Cultura e Memória Rurais, acesse: https://www.facebook.com/redepontosdeculturarurais ou entre em contato com o Ecomuseu Rural através do e-mail sobradocultural@gmail.com ou pelo https://www.facebook.com/sobradoculturalrural

Estiveram presentes diversos pontos de cultura e de memórias rurais: Memorial Carnaúba (Jaguaruana – Ceará), Omorodê – Kilombo Morada da Paz (Triunfo – Rio Grande do Sul), Associação Locômbia Teatro (Boa Vista – Roraima), Centro Cultural Visconde de Mauá (Visconde de Mauá – RJ), Tesouros da Terra (Lumiar – RJ), Centro Cultural Viva (Duas Barras – Rio de Janeiro), Rede Tucun (Fortaleza – Ceará), Ecomuseu Rural (Bom Jardim – Rio de Janeiro), Olho do Tempo (João Pessoa – Paraíba),  Escola da Mata Atlântica (Aldeia Velha – Silva Jardim), Meninos do São João (Palmas – Tocantins), Sociedade Musical Euterpe Lumiarense (Nova Friburgo – Rio de Janeiro), Quilombo do Sopapo (Porto Alegre – Rio Grande do Sul), A Bruxa tá Solta (Boa Vista -Roraima), Núcleo Interdisciplinar de Narradores e Agentes Culturais (São Paulo – São Paulo), Criativa Musical (Icó – Ceará), entre convidados.

Revisão: Renato Cosentino

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