Nós, que fazemos a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA- Agroecologia), vimos nos posicionar perante a sociedade brasileira, sobretudo aos associados e às associadas da ABA, não apenas sobre a emergência em saúde pública relacionada à disseminação do Covid-19 (novo coronavírus), mas também, em defesa de uma ciência crítica e cidadã e de um novo pensamento de sociedade. Mais do que nunca, é tempo de fortalecer estratégias de produção de conhecimentos e de intervenção no campo da agroecologia, reconectando saúde, ambiente, alimentação e trabalho, buscando reverter os desequilíbrios ecológicos e sociais existentes em uma sociedade profundamente interdependente e, ao mesmo tempo, extremamente desigual. Superar a pandemia que atualmente assola o mundo nos exige, nesse momento, uma postura de responsabilidade coletiva, o que inclui, no cenário atual, o suporte às medidas de isolamento social.
Nesse sentido, a ABA vem a público repudiar os sucessivos cortes nos recursos para a saúde, a educação e as políticas de desenvolvimento científico e tecnológico que, de forma direta (e indireta) interferem tanto na qualidade dos serviços prestados à população, como na capacidade da sociedade brasileira de reagir nesse momento de crise.
A pandemia do Covid-19 se instaura em meio a uma crise climática sem pre- cedentes, associada a um movimento intensivo de destruição da biodiversidade e de desestabilização dos processos ecológicos que sustentam a vida no planeta. O desmatamento, a contaminação dos sistemas vivos por agrotóxicos, transgênicos e resíduos oriundos da mineração, a fragilização dos sistemas produtivos de uso múltiplo, manejados por camponeses, extrativistas e povos e comunidades tradicionais, assim como a desterritorialização de populações, urbanas e rurais, são alguns dos efeitos gerados pelo atual modelo de desenvolvimento. As formas hegemônicas de produção e consumo de alimentos e fibras, com base nos monocultivos e na criação de animais em escala industrial estão, por conseguinte, em xeque.
Encadeamentos muito complexos vinculam a destruição dos ecossistemas naturais, a expansão de cultivos geneticamente homogêneos, a estruturação de longas cadeias de produção e consumo e o aparecimento de doenças em cultivos agrícolas e, especialmente, nos animais, incluindo os seres humanos. Doenças como a Gripe Aviária, Influenza e Doença da Vaca Louca, por exemplo, estão estreitamente ligadas à criação confinada de animais que, como sugerem Altieri e Nicholls, criam um ambiente propício para que determinados vírus sofram mutações e se propaguem (ALTIERI e NICHOLLS, 2020). Diversos estudos têm investigado, também, a relação existente entre a emergência de doenças infecciosas e a perda da biodiversidade (FAUST et al., 2018). A disseminação do vírus Ebola, na África Central e Ocidental, tem sido associada, por exemplo, à destruição da cobertura florestal nativa (RULLI et al, 2017). Esses esforços de pesquisa nos convi- dam, portanto, a continuar investigando as conexões existentes entre a saúde humana, o ambiente e as for- mas hegemônicas de organização do atual sistema agroalimentar.
É ainda mais preocupante o fato do Covid-19 chegar ao Brasil no momento em que temos em curso no país um projeto político que levanta como bandeiras a redução dos investimentos públicos, a discriminação dos mais pobres e a desconstrução de todo um conjunto de instituições governamentais e de espaços de participação e controle social engajados na garantia do bem-estar da população. Inúmeros exemplos concretos desta política obscurantista podem ser elencados, incluindo: os recorrentes cortes (2018, 2019 e 2020) no orçamento das universidades públicas, institutos federais e de uma série de instituições de pesquisa, incluindo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Embrapa; a redução das bolsas de pesquisa (nos níveis de graduação e pós-graduação); o desmonte da legislação ambiental; a flexibilização dos marcos jurídicos relacionados aos agrotóxicos; o desmonte das Políticas de Reforma Agrária e Extensão rural; as tentativas de desmonte do Sis- tema Único de Saúde (SUS); a desqualificação, pelo próprio governo, de nossos sistemas públicos de informação – como vimos acontecer em relação às taxas de desmatamento aferidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e aos índices de desemprego medidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Especificamente no campo da Agroecologia, dispomos hoje de um importante arcabouço institucional – de pesquisa, ensino e extensão – que abarca os cursos nos diferentes níveis e modalidades de ensino (do ensino médio integrado à Pós-graduação), os Grupos de Pesquisa e, especialmente, os Núcleos de Estudos em Agroecologia (NEAs), presentes em todo o território nacional. Os NEAs, por sua vez, vêm sofrendo com cortes orçamentários e as interrupções ocorridas na publicação de novos editais, observando-se uma significativa redução em sua capacidade de atuação no plano local.
É importante observar, ao mesmo tempo, que a produção de conhecimentos agroecológicos nos diferentes biomas brasileiros em defesa da construção de territórios sustentáveis e saudáveis não se restringe a este aparato de ensino, pesquisa e extensão, pois envolve uma teia mais ampla de organizações que abrange os movimentos sociais, as associações e cooperativas, as entidades não governamentais e/ou coletivos de assessoria técnica, entre outros agentes. As ações em defesa da vida protagonizadas pelas mulheres, juventudes, povos originários, comunidades quilombolas, comunidades tradicionais, populações extrativistas, populações indígenas, pescadores e pescadoras artesanais, assentados e assentadas da reforma agrária, acampados e acampadas, populações que vivem nas periferias urbanas, bem como pelos agricultores e agricultoras familiares, estão na raiz da Agroecologia.
Estas populações encontram-se, no entanto, nesse momento, profundamente ameaçadas, não apenas pela pandemia, mas pelos desequilíbrios gerados por um sistema onde a terra, a água, a biodiversidade e o alimento são vistos como fonte de lucro e não como bens comuns. A situação de vulnerabilidade vivida por estas comunidades, pressionadas em seu cotidiano pelo agronegócio, pelos grandes projetos de infraestrutura e pela mineração – que são continuamente excluídos do acesso aos meios de vida e a serviços essenciais de caráter público, que deveriam ser garantidos pelo Estado – não pode ser percebida pela sociedade brasileira como um problema localizado ou vivenciado por grupos sociais específicos. Ela é a expressão de uma crise civilizatória, de ordem ecológica e ética em escala planetária.
Tornam-se, também, mais visíveis, nesse momento, as contradições que atravessam o sistema alimentar global, em um planeta em que 820 milhões de pessoas são afetadas pela fome e 2 bilhões de pessoas vivenciam níveis moderados ou severos de insegurança alimentar (FAO, 2019). A imagem de uma Agricultura 4.0, capaz de integrar o big data, a agricultura de precisão, as ferramentas da biotecnologia em sistemas de produção e consumo globalizados e controlados pelas grandes corporações, esconde, mais uma vez, os inúmeros problemas embutidos nessa narrativa “modernizadora”, como o aumento do desemprego, a precarização do trabalho, os riscos à saúde e a lógica extrativista predatória de relação com a natureza que sustenta esta construção.
Nesses termos, é fundamental ampliarmos nossos olhares, problematizarmos, refletirmos e, sobretudo, propormos ações concretas no enfrentamento a essa situação de crise, de natureza multidimensional, desencadeada pela disseminação do Covid-19, tomando a Agroecologia e a transdisciplinaridade como referências concretas e necessárias.
Nesse sentido, exigimos, enquanto uma entidade científica, que tenhamos o direito de seguir construindo o conhecimento agroecológico a partir de práticas transformadoras de ensino, pesquisa e extensão, em diálogo com os atores sociais, culminando assim, em mudanças efetivas nas vidas das pessoas, enxergando, ao mesmo tempo a natureza como Sujeita de Direitos. Para tanto é necessário:
- A revogação imediata da EC 95, que congela por 20 anos os gastos sociais;
- Garantia da Autonomia Universitária e dos Institutos Federais, com pleno respeito à democracia interna nas Instituições Federais;
- Reconstituição das Políticas de Ciência e Tecnologia, Saúde e Meio Ambiente;
- Fortalecimento da Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural
- A implementação da Renda Mínima aprovada pelo Congresso Nacional;
- O apoio orçamentário e financeiro às agências de fomento à pesquisa (CAPES, CNPQ e Fundações Es- taduais de Pesquisa);
- Fortalecimento das instituições voltadas à produção de conhecimentos em Saúde Pública, como a Fundação Osvaldo Cruz, o Instituto Butantan, os hospitais universitários, entre outras;
- Fortalecimento e redirecionamento para atuação com Agroecologia da EMBRAPA enquanto Empresa Pública de Pesquisa Agropecuária;
- Retomada/reabilitação da PNAPO, do SISAN e fortalecimento do SUS;
- Fomento da Agroecologia nos territórios, mediante os instrumentos legais e operacionalização das compras institucionais tais com o PAA e PNAE;
- Abertura de editais via CNPq para os NEAs para o fortalecimento das pesquisas em Agroecologia, Saúde e Meio Ambiente.
A ABA reitera a necessidade de termos investimentos no campo da construção do conhecimento agroecológico para, assim, seguir construindo inovações sociais e tecnológicas capazes de possibilitar a transição para novos formatos de produção e de consumo de alimentos e organização da vida nos territórios, sem, no entanto, negligenciar práticas e saberes ancestrais que prezam pelo respeito à natureza em suas múltiplas expressões e formas de existência. Em tempos de pandemia do Covid-19, em diferentes contextos, é a Agroecologia que concretiza alternativas capazes de promover o enfrentamento à essa situação de crise – ambiental, social, política e alimentar. Em nível nacional, a construção de nossa soberania alimentar passa, necessariamente, pelo fortalecimento dos sistemas produtivos manejados pelos camponeses, agricultores familiares e extrativistas nos diferentes biomas brasileiros, em uma perspectiva territorial.
A Agroecologia nos ensina a observar o tempo. O tempo de nascer; crescer; colher; comer; nutrir; ser; estar; sentir. O Covid-19, de forma imperativa, está nos convidando a refletir sobre nossas ações e nossas prioridades. O mundo que conhecíamos não existirá mais depois desta pandemia. Mas como nos ensina o poeta Thiago de Mello, “faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar”.
Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia)
* Esta carta foi publicada no Editorial da Revista Brasileira de Agroecologia (RBA) v. 15 n. 1 (2020): Edição de Março de 2020, disponível, na íntegra, em: http://revistas.aba-agroecologia.org.br/index.php/rbagroecologia/article/view/23202
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