Islandia BEZERRA[1]
Larissa Mont’Alverne Jucá SEABRA[2]
A sociedade brasileira tem acompanhado nos últimos dias as notícias sobre o gasto estratosférico do governo federal (em milhões) – a saber quase 17 em batatas fritas, 2 em goma de mascar, 50 em biscoitos e 15,6 em leite condensado – para órgãos do poder executivo. Essas informações foram disponibilizadas no portal de compras do governo e foram apresentados em reportagem publicada pelo portal Metrópoles. (https://www.metropoles.com) e tem ganhado repercussão nas redes sociais e na imprensa em geral. Tais aquisições (superfaturadas ou não, partes de processos fraudulentos sem licitação ou não), traz à tona o debate: nem tudo que é legal, é moral.
Comprar assim? Ou comprar assado? As escolhas determinam o modelo
O processo licitatório é o mecanismo de compras públicas usado, inclusive, para a aquisição de alimentos, que ao longo da sua existência tem favorecido (e ainda favorece) os grandes conglomerados das indústrias de alimentos. Sabe-se que grande parte dos produtos fornecidos por meio dessa modalidade de compras, são classificados como ultraprocessados (BRASIL, 2014). Os produtos processados e ultraprocessados, geralmente contêm grandes quantidades de sódio, açúcares livres, gorduras saturadas, gorduras totais e ácidos graxos trans adicionados pelos fabricantes (OPAS, 2016). Os ultraprocessados são também frutos de um sistema alimentar que, de acordo como o relatório EAT-Lancet (2020), está levando ao colapso as saúdes – das pessoas e do ambiente – com a sua produção industrial (animal e vegetal) extensiva e destrutiva, o uso desenfreado de agrotóxicos e ainda o uso de Organismos Geneticamente Modificados (OGM).
Paula (2017) cita que são os conglomerados do setor agroindustrial que passa pela produção, processamento e distribuição, que interferem fortemente nos processos de comercialização, por exemplo as compras públicas, e que ainda investem ostensivamente – mediante suas estratégias de marketing – na imposição de um consumo alimentar homogeneizado reverberando assim em um perfil epidemiológico e nutricional de uma população cada vez mais adoecida. A escolha por adquirir esses produtos – em geral realizadas pelo Portal de Compras do Governo Federal (https://www.gov.br/compras/pt-br) ou ainda nos portais de compras dos municípios e estados – em certa medida, reproduz, fortalece e perpetua as inúmeras desigualdades e iniquidades desse sistema que contamina, destrói, mata e adoece pessoas e ambiente.
Para Perez e Matioli (2020) existe um arsenal de evidências científicas que associam profundas transformações, sejam no ambiente alimentar, sejam nos modelos alimentares adotados na vida cotidiana que desembocam nos elevados números de pessoas portadoras das chamadas Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) tais como diabetes, hipertensão arterial sistêmica (HAS), vários tipos de cânceres e doenças cardiovasculares. Constatações que corroboram os achados de Louzada et al (2019). Na contramão desse processo, que ainda é excludente já que privilegia apenas as grandes empresas do setor, outras modalidades de aquisição – especialmente de alimentos – vem sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo dos últimos anos como por exemplo, as Chamadas Públicas (CP). Tal modalidade operativa de compra se caracteriza pela diminuição da burocracia que, por sua vez, estimula a participação de organizações e/ou coletivos que operam nacional, regional e/ou localmente.
Essa modalidade passou a ser operacionalizada a partir da Lei 11.947/2009 – que alterou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – cuja importância foi, em que pese todas as limitações, a de institucionalizar a aquisição de alimentos provenientes da agricultura familiar local e/ou regional, dando preferência aos alimentos orgânicos e/ou agroecológicos, e ainda estimular e promover processos inclusivos nos processos de compra de alimentos dos segmentos das agriculturas familiares tais como assentados e assentadas de reforma agrária, povos e comunidades tradicionais, povos originários de diversas etnias, além de outros grupos sociais (BRASIL, 2009). No caso do PNAE e mediante a modalidade das CP foi possível constatar uma expressiva participação de organizações que compõem o campo agroecológico nos processos de aberturas dos editais conforme citam Monteiro e Londres (2017).
Antes do PNAE, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) instituído pela Lei nº 10.696 de 2 de julho de 2003, nas mais distintas modalidades operativas, já ensaiava um modelo eficiente – em que pese suas limitações burocráticas – de uma aquisição de alimentos pautada em outros princípios como os de valorização da economia local, das dimensões sociais, culturais e, sobretudo, das questões ambientais. De acordo com Delgado et al (2005) e Porto (2014) o PAA, em essência, possui duas finalidades: 1. promover o acesso à alimentação para as pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e, 3. incentivar a comercialização dos produtos da agricultura familiar. Para tanto o PAA encontra-se estruturado a partir de seis modalidades, a saber, Compra com Doação Simultânea (CDS), Incentivo à Produção e ao Consumo de Leite, Compra Direta da Agricultura Familiar, Formação de Estoques, Compra Institucional (CI) e Aquisição de Sementes (BRASIL, 2012a).
O desafio da oferta da Comida de Verdade nos ambientes institucionais
Com base no Manifesto da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Comida de Verdade “é aquela que respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. […] Não mata nem por veneno nem por conflito. […] É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e a paz entre os povos” (ABRASCO, 2015).
Neste sentido a modalidade do PAA denominada Compra Institucional (CI) possibilita às instituições públicas adquirirem “comida de verdade”, ou seja, alimentos da agricultura familiar (AF) com dispensa de processo licitatório, isto é, mediante as chamas públicas conforme referencia o marco regulatório (BRASIL, 2012a; 2012b; Oliveira e Brandão, 2019). Ademais, as CI permitiram a ampliação das ações de responsabilidade socioambientais das instituições, com foco na qualidade e na sustentabilidade (BRASIL, 2012). De acordo com o relatório do WORLD FOOD PROGRAMME (WFP), essa modalidade trata-se de uma espécie de “edital público”, em que consta o conjunto de alimentos demandados e todas as informações referentes à tipificação dos mesmos (WFP, 2015).
Entre os mercados institucionais, as três esferas de governo (municipal, estadual e federal) estão envolvidas em todas as operações de compras de alimentos, quer sejam creches, escolas, sistema carcerário, hospitais, universidades e forças armadas. Esses órgãos devem obrigatoriamente realizar compras institucionais de alimentos oriundos da agricultura familiar em um percentual mínimo de 30% (BRASIL, 2015).
As CP, portanto, favorecem a aquisição da produção local, do que nominamos de “comida de verdade”. Porém, em alguns territórios a pouca estrutura dos segmentos das agriculturas familiares os impedem de suprir a demanda das instituições públicas que compram grandes quantidades de alimentos. O incentivo e/ou o fortalecimento dos sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis e por que não dizer à agroecologia nos territórios – mediante a aquisição de alimentos – contribui não apenas para a melhoria da qualidade da alimentação da clientela que se alimenta nessas instituições, mas também ajuda a diminuir as desigualdades sociais e econômicas, bem como os impactos ambientais.
Sobre essa assertiva convém referenciar as autoras Giordani, Bezerra e Anjos (2017, p. 434) que citam “… a agroecologia, em consonância com o principio da soberania alimentar, promove um processo de ressignificação da comida, lançando luz sobre a interdependência entre os sistemas alimentares e os diferentes modos de viver, produzir e comer”. Assim, permitir que o dinheiro público utilizado nas diferentes esferas governamentais para a aquisição de alimentos, seja direcionado para a aquisição de produtos comprovadamente prejudiciais à saúde da população, sobretudo se em excesso como leite condensado e batatas fritas, e que tem sua produção relacionada à impactos ambientais negativos, a despeito de se legal, é no mínimo imoral.
Comida de verdade é um direito e o Estado tem o dever de provê-la
É necessário evidenciar, portanto, que a gestão pública tem sim uma responsabilidade legal, moral e ética sobre o que se compra e o que se oferta de alimentos e/ou preparações nos ambientes institucionais nas esferas municipais, estaduais e federais. O fortalecimento dos sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis pautados nos princípios da agroecologia, é portanto, a estratégia capaz de disparar e mobilizar processos transformadores tanto no quesito da produção, como no consumo de alimentos.
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[1] Islandia Bezerra – Presidenta Nacional da Associação Brasileira de Agroecologia/ABA (Gestão 2020-2021) http://aba-agroecologia.org.br. Professora Associada da Faculdade de Nutrição – FANUT/UFAL. Educadora Colaboradora na Escola LatinoAmericana de Agroecologia (ELAA). Nutricionista/UFRN. Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais/UFRN. Pós-Doutorado na Universidad Autónoma de Chapingo/UACh, México. islandiabc@gmail.com
[1] Larissa Mont’Alverne Jucá Seabra – Sócia da Associação Brasileira de Agroecologia/ABA. Professora do Departamento de Nutrição e do Programa de Pós Graduação em Nutrição – PPGNUT da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. Nutricionista/UFRN. Mestrado em Tecnologia de Alimentos/UFC. Doutorado em Ciências da Saúde /UFRN. larissaseabra@yahoo.com.br
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 7.775, de 4 de julho de 2012. Diário Oficial da União. Brasília, 2012a.
_______. Resolução nº 50 de 26 de setembro de 2012. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos. Diário Oficial da União. Brasília, 2012b.
_______. Decreto n° 8.473, de 22 de junho de 2015. Estabelece, no âmbito da Administração Pública Federal, o percentual mínimo destinado à aquisição de gêneros alimentícios de agricultores familiares e suas organizações, empreendedores familiares rurais e demais beneficiários da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/D8473.htm
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