Por Camila Nobrega, do Canal Ibase e do FBSSAN
Em vez de sino, um batuque em galões de plástico e latas deu o primeiro chamado. O coro forte seguiu. No lugar de água benta, banho de cheiro da Amazônia. Nada de filas, a hora era de roda. Assim começou a plenária de Mulheres no III Encontro Nacional de Agroecologia, na tarde deste sábado (17/5). Em pauta a desigualdade de gênero e o machismo que está entranhado em cada relação, dentro e fora de casa, uma das principais lutas da agroecologia, que conta com centenas de grupos de mulheres em todo o Brasil.
Uma a uma, participantes de diferentes delegações falaram para uma plateia de cerca de 700 pessoas – mais de 80% de mulheres – em declarações que conectaram os conflitos vividos, trazendo à tona desde a dificuldade de acesso às políticas públicas até as relações com maridos e filhos. Por outro lado, as falas trouxeram a força da luta feminista dentro do movimento de agroecologia.
Eles não entendem
“Mexo com leite e gado. Trabalho duro, mais do que muito homem. Não estou aqui para falar mal do meu marido, mas, quando eu falei que vinha para o encontro, ele e meu filho disseram ‘você vai fazer o que lá?’ Eles não entendem, nós ainda somos muito desvalorizadas. Olhar a carinha de cada uma de vocês está me fazendo muito feliz. Eu vim mostrar que as mulheres têm valor, e é muito”, disse Ione Noronha, de Unaí, Minas Gerais.
Com o lema “Sem feminismo não há agroecologia”, as participantes fizeram discursos carregados de emoção, que evidenciaram os reflexos da sociedade patriarcal na agricultura. As mulheres falaram sobre a cultura de submissão das mulheres camponesas aos maridos, que muitas vezes não apoiam a entrada delas nos movimentos feministas, denunciaram a falta de acesso a crédito, discriminações – como a homofobia – e outras dificuldades enfrentadas no dia a dia.
A agricultora Rita Barbosa, pernambucana que hoje mora no Rio de Janeiro e faz parte da Rede de Agricultura Urbana, lembrou que as mulheres vivem diversos tipos de violência todos os dias no Brasil:
“Quando as empresas tomam nossas terras, somos violentadas. Também somos violentadas nos nossos direitos a todo momento. Se a mulher tem marido, ela só tem acesso a crédito no nome dele. Se ela não é casada, tem muita dificuldade. Quem construiu o movimento de agroecologia foram as mulheres, precisamos dar nosso grito de liberdade e pressionar as instituições”
Rita pediu também um grito de guerra em apoio às adolescentes nigerianas que foram sequestradas por um grupo extremista islâmico Boko Haram. De acordo com organizações de direitos humanos, as menores foram obrigadas a se casar e, em alguns casos, os sequestradores as venderam como esposas por duas mil nairas cada uma (equivalente a pouco menos de R$ 30). A plenária apoiou, somando-se ao grito de centenas de entidades de todo o mundo que pedem a libertação das meninas.
No Brasil, os problemas são diferentes, porém não menos graves. Na última quinta-feira (15/5), uma camponesa foi encontrada morta no município de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Ela era militante do Movimento Sem Terra (MST) e morava no assentamento Zumbi dos Palmares, onde outras três pessoas já haviam sido assassinadas desde janeiro de 2013, devido ao forte conflito agrário na região.
“A gente reconhece o que foi feito pela reforma agrária nos últimos anos, mas é preciso falar o que não foi feito. Sou uma acampada de 11 anos e até hoje essa terra não saiu. A violência nesses espaços é muito grande, especialmente com mulheres e crianças. Somos violadas e o Estado é conivente”, disse Eliana Santos, da Federação dos Agricultores da Agricultura Familiar (Fetraf) da Bahia.
Selma Glória, do Movimento de Organização Comunitária (MOC), também da Bahia, lembrou a grande importância da bandeira feminista dentro da agroecologia.
Novas relações
“A agroecologia não é só agricultura sem veneno, é uma construção de novas relações, com a terra, com melhores condições para mulheres e para todos. Machismo não cabe aqui.”
As semelhanças nas declarações ultrapassam as fronteiras brasileiras. A equatoriana Maria de Los Angeles, representante do Movimento Agroecológico da América Latina e do Caribe (Maela), falou sobre a luta em toda a região:
“Não temos acesso aos meios de produção, às sementes, as decisões. Em espaços como o Equador, com grande migração para cidades e até outros países, as mulheres têm um papel essencial, de ligação com o território. Elas têm forte carga de trabalho, são elas que cuidam das sementes nativas, cuidam da família. 70% da população consome produtos de pequenos produtores e maior parte do trabalho já se sabe que é das mulheres.
Para ela, é urgente a luta para posicionar a mulher dentro da agricultura e agroecologia. Só com o reconhecimento do movimento feminista como um dos protagonistas a agroecologia poderá prosperar, na opinião da equatoriana.
Para Vanessa Schotz, do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, que foi uma das coordenadoras da plenária, a plateia cheia deu o tom da importância do tema dentro do movimento do movimento.
Agroecologia transformadora
“Foi um momento especial, para a construção de uma agroecologia crítica a transformadora, com igualdade de gênero e autonomia política e econômica para as mulheres. “
Ao final, duas mulheres cantaram músicas compostas por si próprias. Uma delas foi Josefa Santos de Jesus. De lenço rosa do cabelo e lenço roxo – símbolo do feminismo – entoou, em ritmo semelhante ao forró, logo acompanhada pela plenária: “Mulher da roça, pele queimada, cabelo seco e mao grossa. Essas mulheres já vivem humilhadas, desde que nascem e não tem onde morar (…) “Essa mulher, quando vai se aposentar, ela sofre humilhação que você tem que ver”
Uma grande ciranda fechou a atividade. O III ENA está sendo realizado na Universidade Federal do Vale São Francisco (UNIVASF), sob organização da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), com a participação de diversas entidades que compõe esta rede, além de movimentos sociais do campo, da saúde, da economia solidária e do feminismo.