Última sessão das mostras do I FICAECO no XI CBA destacou filmes de temática indígena; cineastas indígenas defenderam o uso do cinema como instrumento de luta
por Diogo Costa
Na aldeia Japuíra, no município de Bresnorte, no Mato Grosso, uma índia de etinia Myky desfruta o balaço em uma rede de algodão que ela mesma produziu. O vai-vem da rede embala seu descanso, e se transforma em uma cena do filme documentário “Jananã”, produzido pelos jovens índios Typju Myky, Minã Myky, Takarauky Myky, Njãsyru Myky, Atu’u Myky, Mãnynu Myky, Kamtinuwy Myky, Njãwayruku Myky, Kojayru Myky e Tipu’u Myky sobre a tradição de produção de redes de algodão por índias do seu povo.
O que se exibe no formato de grandes imagens no telão do cinema é o olhar de um povo sobre a sua própria história, contada por eles próprios e pela apropriação de recursos e linguagens do audiovisual para construção de um cinema legitimamente indígena, desde o tema até a produção.
“Esses vídeos que a gente faz é uma forma de mostrar a nossa realidade. O que a gente sofre dentro da aldeia. Serve como luta para mostrar para outras pessoas que são de fora”, enfatizou o jovem Typju Myky, estudante de agroecologia que também pretende ser jornalista e cineasta.
Manynu Myky é da mesma aldeia e também estuda agroecologia. Ela pretende também ser jornalista e fotografa “para tirar as fotos e mostrar para os outros povos que a gente pode ter tudo, fazer filmagem para mostrar pra eles como são nossas lutas. Como um amigo meu falou aqui. Através disso daí eu acho que a gente tem tudo para conseguir nossos direitos e mostrar a realidade do nosso povo, né, como a gente vive”. explicou Manynu porque deseja ser fotografa.
Typju e Manynu Myky falaram sobre suas experiências durante a produção do filme Jananã no debate da última sessão da I Festival Internacional de Cinema Agroecológico (I FICAECO), que aconteceu entre os dias 05 e 07 de novembro no auditório da reitoria da Universidade Federal de Sergipe (UFS) como parte da programação do XI Congresso Brasileiro de Agroecologia (XI CBA).
Typjy e Manynu compartilharam as falas do debate com Atu’u Myky, Minã Miky. Eles também participaram da produção do filme. Os índios Kleber Xukuru, da aldeia Pesqueira, em Pernambuco, e Marcelo Tingui, de Alagoas, falaram sobre os trabalhos audiovisuais que desenvolvem junto com suas comunidades. O criador do projeto Vídeo nas Aldeias, o cineasta Vicente Carelli entrou no debate após as falas indígenas e respondeu perguntas da plateia sobre seu filme “Antonio & Piti”, exibido na manhã do dia 07, mesmo dia do debate.
Cinema como forma de luta
Eles destacaram a importância da apropriação do audiovisual como forma de luta pelos seus direitos através da produção de narrativas que contam as suas próprias vivências e experiências.
Kleber Xukuru trabalha há mais de 10 anos com audiovisual na produtora Ororubá Filmes, que fica na aldeia Pesqueira, em Pernambuco. Ele os incentivou os cineastas Mykys a utilizarem o cinema como instrumento de luta.
“Fico muito feliz em ver meus parentes aqui. Digo a eles que se puderem mesmo, utilizem o cinema como uma ferramenta de luta, igual a gente faz nos povos do Nordeste. Se articulando cada vez mais para utilizar o cinema como uma ferramenta de luta. Nossos documentários vão sempre atingir várias pessoas rapidamente, quando tá acontecendo algo no nosso território”, destacou.
Ele completou sua fala defendendo que as produções também devem mostrar outros aspectos nas histórias.” Não esperar vir matar um índio, uma coisa parecida, mas mostrar o que ocorre de bom também quando tem nosso território. Quando a gente tem o nosso território homologado, demarcado, a gente tem toda a proteção da mãe natureza, trabalhando com o ensino da agroecologia”.
Marcelo destacou que o cinema transpõe fronteiras. “Essa questão de usar o cinema e a agroecologia é importante porque o cinema alcança lugares sem limitações. Assisti documentários e fiquei muito satisfeito”, opinou. Em seguida ele demonstrou preocupação com o “rótulo” agroecologia, argumentando que o termo é utilizado pelo governo para promover propagandas enganosas e colocar dentro dos movimentos. Segundo ele o seu povo utiliza o termo “plantio limpo” em vez de agroecologia.
Respondendo ao questionamento de um participante da plateia sobre as dificuldades enfrentadas durante produções dos seus filmes, Typju Myky disse que teve dificuldades iniciais para manusear softwares de edição, destacando a dificuldade para aprender com os manuais em inglês. Como solução ele aprendeu a editar a partir da plataforma de criação de vídeos YouTube.
Além de Jananã, também foram exibidos na mostra principal da sessão de encerramento do I FICAECO “Terra Sagrada”, de Aishá Lourenço, que narra a agricultura ancestral dos povos Xukuru, mostrando o uso dos territórios para o cultivo de plantas e ervas medicinais, e “Laklãnõ/Xoklengo: órfãos do vale”, de Andressa Santa Cruz e Clara Camandolli, que apresenta a histórias de violências contra indígenas Laklãnõ/Xoklengo, construindo uma narrativa que aborda o genocídio indígena com a chegada de imigrantes, alagamentos de aldeias para construção de barragens e o assassinato do líder indígena Marcondes Namblá, em janeiro de 2018.
Antonio e Piti é um documentário do cineasta Vicente Carelli que narra a união amorosa entre personagens da história que dão nome ao filme. Ele é um índio peruano da etinia Ashaninka e a sua esposa, dona Piti, uma brasileira não indígena. Antônio e Piti foi o último filme exibido nesta edição do festival.
Os cineastas receberam da organização do festival o troféu moldado em vidro e madeira Ana Primavesi, engenheira agrônoma austríaca-brasileira pioneira da agroecologia no Brasil e na América-Latina. Além dos cineastas o troféu também homenageou militantes, representantes de povos indígenas e quilombolas. As homenagens com o troféu Ana Primavesi fizeram da estrutura do FIAECO.
O Festival Internacional de Cinema Agroecológico no CBA
Em sua primeira edição no formato de festival, o FICAECO dividiu as exibições dos filmes em mostra principal, na qual foram apresentados 28 filmes selecionados entre os 138 inscritos, e mostra especial, que apresentou 7 filmes indicados em curadoria.
O festival também abriu espaço para apresentações de grupos de arte e povos indígenas, provocando emoções no público através da arte e da cultura. Na abertura das sessões das mostras da tarde do dia 06 o grupo Micorrizas realizou uma apresentação artística.Na mesma tarde os índios da etnia Kariri-Xocó, do município sergipano de Porto da Folha entraram de surpresa no auditório da reitoria da UFS dançando, tocando instrumentos e cantando. Após se apresentarem o Cacique Bá pediu que todos presentes no auditório levantassem e dessem as mãos para que ele pudesse fazer uma oração indígena em seguida. Em reverência o público atendeu ao pedido. Neste dia o auditório estava com a sua lotação máxima esgotada.
As rodas de debates ao final das sessões das mostras principal e especial também compuseram a estrutura do FICAECO e proporcionaram diálogos entre o público presente e cineastas e documentaristas dos filmes do festival. Durante os debates os produtores das obras e representantes de instituições, povos e organizações convidados para as mesas de discussões compartilharam suas experiências e responderam questões da plateia.
Na abertura do Festival, no dia 5, a exibição dos filmes “ El costo humano de Los agrotóxico” e “Fabian, la sombra del êxito”, do fotojornalista e cineasta argentino Pablo Piovano, e “O Diagnóstico”, de Beto Novaes, pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nortearam as discussões dobre os impactos dos agrotóxicos para a saúde de trabalhadores de lavouras.
Os documentaristas falaram sobre suas obras e responderam questões do público junto com Raquel Rigotto, médica e pesquisadora da Universidade Federal do Ceará e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), e por Margaret Matos, procuradora regional do trabalho do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR). A mediação do debate foi feita pela médica e pesquisadora da Universidade Federal do Cariri (UFCA) Ada Pontes. A temática dos danos causados pelo agrotóxico também foi destaque em outros espaços da programação da XI edição do CBA.
Nesta primeira edição em formato de festival o FICAECO recebeu filmes nas modalidades de curta, média e longa-metragem que abordaram questões agroecológicas a partir dos gêneros de ficção, animação, documentário, ou experimental de cineastas brasileiros e dos Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Bolívia, Cuba.
O FICAECO integrou a programação do XI CBA, que acontece desde de 2003 com a participação de instituições de ensino, pesquisa e extensão e a sociedade civil envolvida com a agroecologia.