Comunicação e cultura, territórios simbólicos da agroecologia

Durante os quatro dias de realização do XI Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), várias atividades refletiram sobre o papel da comunicação e da cultura na agroecologia

Por Viviane Brochardt – Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) / Coletiva de Comunicação e Cultura da ANA

“Quem tem a fala já é comunicadora”

Maria do Céu, agricultora do Polo da Borborema/PB

Facilitação gráfica da conferência conjunta
Foto: Ana Clara de Abreu

De conferência à apresentação de trabalhos científicos e relatos de experiências, várias foram as atividades realizadas durante o XI Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) que tiveram como objeto de reflexão o papel da comunicação e da cultura na ampliação e no enraizamento da agroecologia nos territórios. 

A disputa de narrativas no enfrentamento ao agronegócio, a relação com a mídia comercial e hegemônica, as diversas formas de comunicação e cultura popular e a centralidade desses temas na política e na prática de movimentos e organizações sociais permearam os debates.

A conferência conjunta “Cultura e comunicação popular: a construção dos territórios simbólicos e a disputa de narrativas” teve como mediadora a jornalista Fernanda Cruz, coordenadora de comunicação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e como debatedoras a agricultora Maria do Céu, integrante do Polo Sindical da Borborema, na Paraíba; o professor e poeta Caio Meneses, do município de São José do Egito, Pernambuco; e o comunicador Lidenilson Silva, integrante do Movimento Camponês Popular (MCP), no Pará.

Foto: Ana Clara de Abreu

O lugar político da comunicação na conjuntura brasileira foi abordado por Lidenilson. “Vivemos hoje uma crise profunda de valores. Discutir comunicação e cultura é discutir ideologia”. Para o integrante do MCP, a comunicação é fundamental para evidenciar as contradições sociais e políticas que vivemos hoje no país. A disputa de projeto, para Lidenilson, se dá também mediada pela comunicação.

Essa leitura de mundo é feita por Caio Meneses com as lentes da poesia. Para o professor e estudante de doutorado, é pela poesia que ele lê seu território. “O território é um local de concepção da vida e das reproduções das identidades, sob outro prisma, a cultura é influenciadora da reprodução dos territórios”.

As diversas linguagens e ferramentas da comunicação e da cultura compõem a estratégia do Polo Sindical da Borborema visando a mobilização social e o fortalecimento de políticas públicas. “Chamar a atenção da sociedade para questões como violência contra a mulher e fortalecer as políticas públicas de convivência com o Semiárido é parte dos objetivos das nossas ações com teatro, rádio, intercâmbio de agricultores e agricultoras”, explica Maria do Céu.

Comunicação com pé no chão

Na Paraíba, segundo Maria do Céu, agricultores e agricultoras familiares encontraram no teatro popular uma forma de expressão de suas lutas e uma linguagem para formação de comunidades. Já se passaram 17 anos desde que o Grupo de Teatro do Polo encenou a primeira peça, ao qual se incorporaram sindicalistas e assessores/as técnicos/as.

Hoje, já são 25 produções para adultos e 34 para crianças discutindo temas como sementes, segurança alimentar, acesso e luta pela terra, plantas medicinais, agricultores/as experimentadores/as, plantas medicinais, fumicultura, boas práticas de beneficiamento, gestão da água, cuidado com a água e oito roteiros diferente para a mais recente peça “A Vida de Margarida”, que trata de relações de gênero e violência doméstica. Em 36 apresentações desse espetáculo, foram contabilizados, aproximadamente, 31 mil espectadores.

De acordo com Adriana Galvão Freire, técnica da organização ASPTA, que assessora o Polo, “cada um dos oito roteiros desenvolvidos para essa peça dialoga com os temas da Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia e busca aprofundar recortes temáticos: desconstrução do machismo, cultura do estupro, identidade racial e racismo, diversidade sexual, divisão sexual do trabalho e assim por diante”, esclarece.

A Marcha das Mulheres aconteceu em março deste ano chegando a sua 10ª edição. É parte da estratégia das mulheres do Polo, unindo comunicação, formação e mobilização social, chamando a atenção da sociedade para aspectos definidos coletivamente no que diz respeito à condição das mulheres na região. A peça A Vida de Margarida, em seus diversos recortes abordados nos oito roteiros temáticos, funciona também como instrumento de formação e preparação para a realização da Marcha.

A agricultora Maria do Céu compartilha a experiência do Polo da Borborema
Foto: Ana Clara de Abreu

O teatro não é a única linguagem adotada. Sindicatos que integram o Polo da Borborema produzem programas semanais de rádio. Devido à crise financeira que vivem os sindicatos, este ano o número de municípios com programas de rádio caiu de 11 para quatro. Além desses, o Polo mantém, há 23 anos, um programa regional na rádio Catirité, emissora vinculada à Igreja Católica. É o quinto programa mais ouvido da rádio e alcança municípios que extrapolam o perímetro de atuação do Polo.

Essas formas complementares de comunicação e cultura visam formação, divulgação e mobilização social. “Buscamos valorizar o nosso conhecimento, realizar atividades e mostrar como elas acontecem”, explica Maria do Céu. Encontram em suportes e meios de comunicação formas de ampliar os saberes acumulados. Além do teatro e dos programas de rádio, são produzidos banners, boletins e vídeos. 

A relação com a mídia é outra atividade de comunicação que as mulheres desenvolvem. “Em algumas situações, como nas primeiras edições da Marcha das Mulheres Pela Vida e Pela Agroecologia, nós procurávamos a imprensa. Hoje, depois de anos de realização da Marcha, já nos tornamos fonte para os veículos e, agora, são eles que nos procuram para darmos entrevistas”, explica Maria do Céu. A agricultora também relaciona os intercâmbios de experiências entre camponeses/as como espaços de comunicação e formação.

Ao mesmo tempo que as agricultoras vão fortalecendo as formas presenciais de comunicação, elas também passam a se familiarizar com as chamadas “novas mídias” e suas linguagens. Criam perfis em redes sociais, realizam lives mobilizando para eventos e também durante os atos, divulgando as atividades. “Se a gente não comunica do nosso lugar, como a gente vai continuar seguindo?”, reflete Maria do Céu.

“Essa conferência dá mais um passo na afirmação da comunicação e da cultura como elementos importantes na construção dos territórios agrocológicos, bem como na reafirmação e no fortalecimento dessas práticas. Embora essas pautas tenham uma longa caminhada conjunta, historicamente os momentos de reflexão e leitura crítica acerca desse caminhar – comunicação, cultura e agroecologia – ainda são tímidos diante da necessidade de alinharmos cada vez mais nossos olhares. A conjuntura nos mostra isso cotidianamente: não podemos mais debater agroecologia dissociada de outros elementos, a exemplo da democratização e do direito à comunicação e à cultura, claramente postos pelas realidades locais como questões que se fundem com as práticas agroecológicas”, afirma Fernanda Cruz.

 Integração Agroecológica

Um dia antes da data de realização da conferência, o debate sobre comunicação também esteve presente nos Ambientes de Interação Agroecológica. Com o tema “Comunicação popular, feminismo e agroecologia: um diálogo possível”, Daniela Bento (SASAC/ASA Sergipe), Maria Clara Guaraldo (Embrapa) e Gleice Mary Gomes (AAGRA/Alagoas) apresentaram a pesquisa que desenvolvem em parceria com agricultoras familiares. O objetivo foi entender como a comunicação interage no território, tendo como objeto de análise exemplares do boletim O Candeeiro com sistematização de experiências de mulheres.

A partir de uma análise crítica desses exemplares, as pesquisadoras apontam, entre outras questões, a necessidade de desromantizar o trabalho das mulheres no quintal produtivo. Segundo as autoras do trabalho, a visão idílica invisibiliza o que elas chamam de “angustias do quintal produtivo”, uma situação composta por acúmulo do trabalho doméstico, do cuidado com a família e com o quintal.

O Candeeiro, que pode ser acessado aqui, é um boletim de sistematização de experiências da agricultura familiar no Semiárido, desenvolvidas por famílias ou coletivos. Desde 2007, quando foram elaborados os primeiros boletins, foram publicados mais de 2.200 números. Em média, cada número tem uma tiragem de mil exemplares. O Candeeiro tem edição em cada um dos nove estados que integram a Articulação Semiárido.

Tapiris de Saberes

Dona Josefa, do Quilombo Sítio Alto/SE, fala sobre a longa parceria com a ASA Brasil
Foto: Luiza Damigo

No mesmo dia em que se refletiu sobre o trabalho das mulheres através do Candeeiro, 4/11, também aconteceu a apresentação dos trabalhos de comunicação nos Tapiris de Saberes. Espaço de apresentação de trabalhos acadêmicos, relatos populares e técnicos, os Tapiris aconteceram durante todos os dias do CBA. Os trabalhos do GT Comunicação Popular e Agroecologia aconteceram na tarde da segunda-feira. Após a seleção dos quase 50 resumos submetidos, foram apresentados 17 trabalhos. Considerando que esta foi a primeira vez que a Comunicação Popular integrou os eixos temáticos do Congresso, a avalição é muito positiva.

A inclusão da Comunicação entre os eixos temáticos é resultado do amadurecimento que vem desde o X CBA, realizado em 2017, em Brasília, quando foi criado o Grupo de Trabalho de Comunicação e Cultura Popular da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia). A expectativa é que as reflexões sobre o tema contribuam para compreende o cenários das experiências, anúncios e denúncias, apontando caminhos na construção das ações nos territórios.

Comunicação e agrotóxicos

A Tenda Rachel Carson acolheu as atividades sobre Agrotóxicos e Transgênicos
Foto: Viviane Brochardt

Na tenda Rachel Carson, que concentrou os debates sobre o uso de agrotóxicos nas lavouras brasileira e os impactos negativos dessas substâncias na natureza e na saúde humana, também se discutiu comunicação.

Contando com comunicadores/as de países como Itália, México, Argentina, Uruguai e Brasil, o que se buscou foi socializar experiências de divulgação e mobilização social de iniciativas em comunicação que alertem para os riscos no uso dessas substâncias. No Brasil, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida é um dos coletivos que buscam alertar a sociedade.

Saiba mais

O XI CBA aconteceu de 4 a 7 deste mês, na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Campus São Cristóvão, evidenciando o importante papel das universidades públicas e gratuitas na construção e democratização do conhecimento e como local de interface entre as diversas formas de saber, científicos e tradicionais.

Além das atividades mencionadas, o GT de Cultura e Comunicação da ABA-Agroecologia teceu, em parceria com a Comissão de Metodologia, outras seis atividades que tiveram como eixos articuladores a comunicação e a cultura, sendo elas: a roda de conversa sobre “Comida é Tradição” com a presença de, pelo menos, três etnias indígenas atuantes na defesa da comida como identidade e patrimônio, a roda de conversa sobre tecnologias da informação em parceria com a Cooperativa Eita, a oficina-prosa com representantes do Movimento Estadual de Mulheres Marisqueiras de Sergipe sobre as “Artesanias Populares”, uma roda de conversa animada pela Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rural e a última conferência conjunta do congresso que conectou os diálogos sobre cultura e comunicação com a educação contextualizada, além de outra roda de conversa sobre comunicação popular e feminismo animada pela ASA Sergipe.

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