Durante a oficina de Sistematização e Comunicação Popular animada pela Embrapa Tabuleiros Costeiros e a Articulação no Semiárido/ASA, em parceria Rede Sergipana de Agroecologia, cruzamos com o “Coletivo Macambira”. Para elas e eles, a arte pode ser o ponto de partida dos processos de sistematização!
O povo e o poeta, empoeirados pela vida… como cantar e contar histórias, re-encantar processos e visibilizar esperanças?
As reflexões levantadas pelas perguntas acima, tendo o texto de Elza Falkembach como inspiração, nos lembra que, em tempos de tantos percalços políticos, é preciso e urgente anunciar os atalhos e as sementes espalhadas nos caminhos construídos pelos movimentos sociais, as organizações populares e os Núcleos de Agroecologia em torno da agroecologia, da comunicação e da vida.
A força de processos coletivos que carecem de atenção, reconhecimento e escuta são faróis brilhando no mar de métodos e ferramentas que buscam sistematizar experiências. Entre os dias 28 e 30 de novembro cerca de 40 pessoas participaram da oficina de “Comunicação Comunitária” realizada pela Embrapa Tabuleiros Costeiros em parceria com a Rede Sergipana de Agroecologia, e a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e outros coletivos e movimentos. A oficina é a terceira, parte das bonitas ações de fortalecimento de comunicação animadas pela Embrapa Tabuleiros Costeiros.
Conversar sobre o papel da comunicação na convivência com o Semiárido e exercitar algumas ferramentas foram desafios que moveram o grupo que se hospedou ao lado do Rio São Francisco em Canindé, sertão sergipano. Trocar experiências sobre os processos de sistematização, animados pela ABA-Agroecologia nas cinco regiões do país, foi o convite que aproximou as ações do projeto com os aprendizados vivenciados por muitos grupos no Semiárido.
Entre um depoimento acalorado, um banho de rio, leituras e histórias contadas pela sanfona e pelas lágrimas que mantém o povo renovado e forte, a proposta do Coletivo Macambira preenche de cor e sentido às práticas de sistematização.
O Coletivo Macambira: Reeditando conteúdos
A macambira é uma planta, parente das bromélias. Como quase tudo no Sertão, a flor tem muitos usos, desde a utilização para evitar a erosão até como alimento para o gado que após a queima, com sabedoria da natureza, amolece seus espinhos para os animais.
Como em toda história, são muitos os começos que podem ser possíveis para contar sobre os laços que aproximaram o Coletivo Macambira representado por essa bonita flor do sertão. Formado em 2011, por um grupo de profissionais na área das Ciências Humanas, o coletivo foi movido pelo desejo de compartilhar os conhecimentos adquiridos no âmbito popular e acadêmico, no estímulo a transformação social.
O principal objetivo do Coletivo Macambira é o investimento constante no desenvolvimento de pesquisas, conteúdos, sistematização e metodologias, re-editáveis e construídas de forma participativa, dentro de quatro pilares: Antropologia Visual, Pedagogia Griô e a Educação Popular.
Pautada na metodologia freiriana dialética de uma educação libertária, entre tantos outros referenciais teóricos, o coletivo finca sua morada em Alagoas, e contribui em vários processos Brasil afora, principalmente no território do semiárido, entre povos e comunidades tradicionais. Entre as principais intenções do Coletivo é colaborar com sujeitos, grupos e lugares invisibilizados por processos equivocados pelo pensamento hegemônico. O Coletivo Macambira acredita na força manifesta de cada pessoa que também é um ser coletivo, construtor de história e identidade. Pautando a autonomia desses territórios sejam eles geográficos, políticos, culturais ou cosmológicos.
A Contação de Histórias e a Construção de Narrativas na Sistematização de Experiências
Quem nasceu primeiro: as mulheres e homens ou suas histórias? Em meio a tanta informação e com o aumento exponencial da velocidade nas trocas e relações, quase sempre passam despercebidas a presença e influência das histórias em nossas vidas, no que somos e aprendemos a ser.
Sendo uma das práticas mais antigas da humanidade, a contação de histórias é um dos pilares das ações do Coletivo Macambira. Para Bruna Fernandes “a contação de histórias tem raízes profundas na sabedoria do povo”. Seja nas conversas à beira do fogão, nos furdunços das feiras livres e nas mensagens contadas e cantadas pelos mais velhos, elas estão presentes e espalhadas pelos quatro cantos do mundo.
Contar histórias reais de forma absurda, e ainda assim reais, é mostrar que o imaginário não é esse impossível. Fazem-nos crer e forçadamente nos impedem de sonhar, muitas vezes criminalizando os sonhadores. E é assim que devemos compreender o ato de contar histórias, não mais como algo para ser praticando “com e quando criança” de forma apequenada e desconecta da realidade.
Devemos lembrar também dos mitos de criação de distintos povos que são capazes de organizar política e socialmente qualquer sociedade, incluindo aquelas de tradições milenares contidas na oralidade. Lembremos também da inserção de personagens nas relações processuais de cada grupo mostrando que essas narrativas não são estáticas e se somam e se moldam a distintas situações, sem perder a credibilidade.
O Brasil tem na base de sua história a oralidade, principalmente nos saberes ancestrais indígena e africano, que sempre mantiveram suas relações e práticas culturais e religiosas a partir de intercâmbios orais. Walter Bejamin diz que a arte de narrar tem haver com as experiências, e que as histórias não se encontram presas em livros, sua veia oral encontra-se nas vivências de cada narrador, e esse narrador é um conselheiro. Por esse motivo tantas sociedades, como alguns grupos africanos, por exemplo, consideram as pessoas mais velhas como mestres contadores de histórias, são os guardiões de memórias, que guardam sobre as coisas do lugar e recontam sempre que necessário, dando sentindo a existência desse lugar, das pessoas desse lugar e suas práticas.
Existe em torno do narrador uma atmosfera sagrada, diz Ecleia Bosi, quem conta história seduz seu ouvinte, fazendo uma espécie de encantamento, provocando a sua sensibilidade e se tornando íntimo desse ouvinte. E por mais que encantadas que sejam as histórias elas devem ter muito da vida de quem conta e de quem ouve, pois só assim essas histórias se tornam conhecimento e troca. Um exemplo são as histórias de vida de pessoas comuns, que podem e devem ser sistematizadas das diversas formas.
Mais concretamente a experiência do Coletivo Macambira é contar histórias de agricultores e agricultoras experimentadoras, e suas práticas de quintais, de manejo da água e proteção das sementes crioulas, ou ainda, dos mitos de criação de etnias indígenas residentes no coração do semiárido brasileiro.
Sentidos e Sabedorias: re-encantando processos de pesquisa, ensino e extensão
“A construção de uma narrativa implica estar disponível. E para estar completamente disponível há que deixar de saber, há que deixar de estar ocupado por certezas. Essa travessia pelo desconhecido é um dos momentos do labor da escrita. Esse é o momento divino em que tudo pode ainda ser”. Mia Couto – Escrever e Saber
Aprender a partir do que existe e do que já é feito “no chão de práticas diversas” dos Núcleos de Agroecologia sempre foi o ponto de partida das rotas percorridas pelo Projeto de Sistematização de Experiências. A mala de viagem que mais parece um balaio de feira, volta sempre carregada de novidades e surpresas. Dessa vez, foi o encontro forte e visceral com a arte, com a arte do povo, com a arte do povo do sertão brasileiro.
Intrigados com a produção exponencial de materiais recobertos de letrinhas miúdas em artigos, livros e cartilhas, entendemos que o processo de sistematização construído pelos núcleos de agroecologia das cinco regiões, podem se aventurar em construir, a partir da sistematização de experiências, narrativas que re-encantem e contem para além dos dados e análises, histórias de vida e resistência.
Ao estimular e, muitas vezes, insistir nas apostas coletivas que são as Instalações Pedagógicas, as Caravanas, os Terreiros Culturais, as Tendas de Trocas de Saberes, os Ambientes de Interação Agroecológicas e muitos outros métodos, denunciamos um dos DNAs do projeto: experimentar outras formas de contar as histórias de vida e resistência que animam e trazem cor para as ações de pesquisa, ensino e extensão desenvolvidas dentro e fora das Universidades, Institutos Federais e centros de pesquisa.
Aproveitamos para agradecer e celebrar a chegada de 2017 com todos e todas: mais arte e esperança nos dias que virão!
Texto escrito colaborativamente por:
Natália Almeida que, quando escuta histórias, sempre sente o gosto das prosas contadas por Dona Tônica, sua Vó, à beira do fogão à lenha em Capão Bonito (SP). Atualmente é colaboradora, como bolsista, do Projeto ABA-Agroecologia.
Simone Lopes que, busca na contação de história um contato com sua ancestralidade, contidas nas vozes das mulheres do chão campesino onde ela nasceu e, é historiadora e pesquisa história oral.
Moisés Oliveira, neto por parte materna de Seu Dotô, o avô que iluminava o coração do menino com histórias de caça nas matas resistentes ao plantio desenfreado da cana, e a vó paterna, Odete, mulher negra de longa trança que contava a vida nas contas do seu rosário é antropólogo e pesquisador/bolsista da FAPEAL.