Criado no CBA de Brasília em 2017, GT de Cultura e Comunicação da ABA-Agroecologia partilha sua história através do fogo, do conto e do encontro
O fogo e as memórias que viram chamas – Por Patrícia Tavares e Edição do GT de Cultura e Comunicação
Há milhares de anos a humanidade recebeu o fogo. Descobriu que o fogo é capaz de produzir calor e luz e que coisas secas podem queimar. Com a dominação do fogo, a humanidade pode se proteger, diversificar a alimentação e desenvolver diferentes receitas para o preparo de alimentos.
Em diferentes lugares do mundo, fogueiras foram acesas, mantidas com lenha, resinas, dias e noites a fio. Já imaginaram quantas pessoas se aqueceram, sobrevivendo ao frio, por que estavam perto do fogo? E as histórias contadas na beira da fogueira? Muitos conhecimentos milenares são vivos até hoje porque foram contados, geração a geração, ali, naquele quentinho, enquanto a comida era preparada e partilhada.
Erguer fogueira também é símbolo de festa, ritual e encontro. No calor do fogo, os povos ainda celebram suas colheitas. Tem fogueiras que são acesas apenas para celebrar o encontro, a oportunidade de contemplar o fogo, a boa prosa, as trocas e a mesa farta. Todos esses fogos e fogueiras nos acendem também por dentro, aquecem nossos corações – é fogo sagrado! Quem partilha uma fogueira, partilha encantos, se aproxima. Mantém acesa aquela chama, que convida para o próximo encontro, para chamar mais gente, para olhar junto.
O fogo interno também é capaz de queimar. O fogo está guardado na nossa memória, na história que vivemos nessa vida. Sabe aquela comida feita à lenha? só de falar arrepia e o pensamento corre longe – faz parte da gente e da nossa cultura. O fogo também está registrado na nossa memória ancestral. Sabe aquelas coisas que às vezes a gente nem viveu, mas sente… quem aí tá pegando fogo?
E foi com a chama do coração acesa em alguns encontros, que começamos a acender essa fogueira, que aqui hoje nos reúne! Há muitos anos atrás, as pessoas ainda podiam se encontrar e dividir o calor que pulsa no peito. Na verdade, não são tantos anos assim. Essa história começou, ali, mais ou menos no final de 2013, 2015, 2016 ou no ano de 2017 – talvez não possamos precisar a data, talvez sejamos ousadas em pontuá-la, talvez tenhamos vivido uma das culminâncias de um processo, espiralado, que trouxe a possibilidade de acender esse fogo, colocar luz na centralidade da cultura e da comunicação para a tessitura de processos agroecológicos.
Algumas pessoas que vinham participando de encontros de agroecologia para trocar experiências e planejar ações sentiram que algo estava faltando. Passaram a observar mais de perto. Viram que a maioria desses encontros tinham festa, alguns tinham até fogueira, tocador, tocadora, o povo dançava – rodava o salão até dia amanhecer. Tinha gente que escrevia, recitava ou simplesmente lia uma poesia. Tudo isso trazia outro clima pro encontro. Mas quem fazia? E começaram a perceber que sempre que tinha um encontro, uma reunião ou mesmo um encontrão – vinha a pergunta: cadê o animador e a animadora? E depois que abriam o espaço, ninguém mais perguntava cadê o animador e animadora para discutir a pauta, para definir a estratégia … cada vez que isso acontecia, a chama ficava ali acesa, latente, queimando – quem sentia, pegava o fogo e ia se juntando – gravetos, galhos, chamas….
A fogueira começou a ganhar força no I Seminário Nacional de Educação e Agroecologia, em 2013. Alguns de nós até estavam lá. Começaram a provocar sobre o papel da arte e da cultura popular para a construção do conhecimento agroecológico – que o verso cantado também faz parte da semente posta no chão e que uma alimenta a outra – sem cultura não há semente e sem semente, como sobrevive a cultura – como sobrevive a “agri-cultura”?
Teve também um encontro muito importante, também lá no Nordeste – o III Encontro Nacional de Agroecologia! Nesse encontro marcado pela pergunta “Por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia?”, um coletivo conquistou voz e espaço, pautando a necessidade de uma comunicação popular, colorida pelas diferentes linguagens e expressões que cada povo no seu território nos ensina a fazer. Falar para o mundo – da forma que só em chamas se sabe fazer. E o calor aumentou, começou a virar E-s-t-r-a-t-é-g-i-a… e muita gente passou a ouvir e falar – você sabe a importância de saber comunicar? Mas a comunicação não é só no jornal, na televisão – ela também acontece quando se ouve uma canção, uma rima ou apenas alguns traços que contam do território e são anotados no chão.
Daí pra frente, o povo começou a “ajuntar“ – era muita lenha para queimar, muito fogo aceso iluminando as possibilidades de agregar a cultura e a comunicação popular. A cada encontro, um foguinho novo chegava para manter acesa a chama. Foram irradiando para os NEAs, as Caravanas Agroecológicas e Culturais e tantos outros processos e projetos que acontecem Brasil afora. Em 2015 teve um curso de Cultura e Agroecologia lá na Zona da Mata Mineira. Ali aprendemos que festa é celebração, tem história, tradição – é a cultura que dá sentido ao que se conhece e ao que se aprende na lida com a natureza. Esse encontrou encheu de lenha e agregou muitas chamas, que seguiram acesas, reunindo outras mais. Ainda em 2015 teve o IX Congresso Brasileiro de Agroecologia – Belém, que marcou o início do Projeto de Sistematização de Experiências dos Núcleos de Agroecologia do Brasil, o que trouxe muito fogo para a discussão da Cultura e Comunicação na Agroecologia.
Em 2016 experimentamos, já com boa parte desse coletivo reunida, a construção das vivências culturais durante o II Seminário Nacional de Educação e Agroecologia. Ali a discussão era a centralidade da educação popular e das metodologias colaborativas, como chama e como desencadeadora de todas as outras práticas e processos agroecológicos, desde a semente até a mesa.
Esse momento reuniu o fogo capaz de quebrar a dormência de uma semente crioula da comunicação agroecológica, plantada com carinho; permitiu que suas brasas acendessem outros fogos em diferentes locais desse Brasil. Do II SNEA, reunimos força para que antes de chegar no X Congresso Brasileiro de Agroecologia, no de 2017 em Brasília, ainda pudéssemos colocar em prática muitos dos princípios que estávamos reunindo desde muito tempo – foi uma explosão! Sabe aquelas fogueiras de festa de São João bemmmmm grandes? Foi isso, faíscas para todo lado, calor intenso, povo chegava a suar de tanto fogo reunido.
Ali foi um marco bem importante da nossa história – tentamos olhar para a cultura como agregadora daquele mundão de gente vinda de todos os cantos do Brasil e fez sentido uma frase muito antes falada – “Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país“. Percebemos que era necessário adentrar nos diferentes territórios e saber que fogo acende, aquece e ilumina os processos agroecológicos por aqui. E foi no final do X CBA, na plenária da ABA, que esse coletivo passou a se identificar como GT de Cultura e Comunicação.
De lá para cá, conseguimos conquistar alguns espaços e também tivemos grandes desafios. Um espaço muito importante foi a construção coletiva e colaborativa de alguns espaços durante o IV ENA, como oficinas temáticas, a contribuição com a articulação dos espaços culturais e a cobertura de comunicação. Para isso, conseguimos dialogar com alguns territórios e articular suas experiências representativas para construir conosco nesses espaços. Ali nascia um coletivo ampliado de Cultura e Agroecologia, que todos aqui conhecem e por onde circulam as informações…
Depois do ENA, nós conseguimos mergulhar na construção do I Encontro de Saúde e Agroecologia, envolvendo juventudes para nos ajudar a dar sentido à essa pauta. Depois desse espaço, as forças começaram a se concentrar na construção do XI Congresso Brasileiro de Agroecologia. Com chamas acesas e peito aquecido, a cultura foi inspiração para a construção do lema: “Ecologia de Saberes: ciência, cultura e arte na democratização dos sistemas agroalimentares”. Essa história vocês viveram, até nos reunimos acendendo chamas para prosear sobre como seguir.
De lá para cá, nesse ano, que já tá atravessado pelo meio, muita coisa aconteceu, conseguimos organizar algumas formações. Mesmo que o ano não tenha começado – daquele jeito junto, perto, colado, aquecido, como costumamos fazer. Mesmo que “A erva seca incendiará a erva úmida” (provérbio africano que os escravos trouxeram para as Américas).
A cultura comunica, encanta, conta, partilha, aprende e ensina, ela faz com que os terreiros existam em cima e debaixo do barro do chão, faz a ponte entre o fazer e o sentir da mente com o coração, dos que tão aqui com os que vieram antes. A cultura costura elos encantados, expande alegria e sabedoria para viver a vida. Dessa forma, constrói territórios simbólicos, a começar pelo nosso corpo como espaço sagrado, fundamental para exercermos qualquer atividade aqui na Terra, mas também cria tramas de manutenção da vida coletiva, transbordando encantamentos nas moradas, formas de fazer e cultivar nossos alimentos – integrados à natureza.
Mesmo distantes fisicamente, continuamos aquecendo nossa fogueira, aprendendo juntos a lidar com tanta mudança, mantendo o encanto e perseverança de que a agroecologia é o instrumento necessário para transformar nossa realidade.
Fazer a Agroecologia – Se encontrar com a Cultura – É saber da poesia – Que há na agricultura.
Poesias partilhadas |
“O povo que planta e pesca, canta, dança e faz festa em seu pedaço de chão. Abastece a sua mesa, agradece a natureza em qualquer religião. Seu lugar, seu oratório, tirar o seu território é calar a tradição.” (Luiz Perequê, caiçara violeiro de paraty)
As quatro velas
Quatro velas ardiam sobre a mesa,
E falavam da vida e tudo o mais.
A primeira, tristonha: “Eu sou a PAZ,
Mas o mundo não quer me ver acesa…”
A segunda, em soluços desiguais:
“Sou a FÉ! Mas é triste a minha empresa:
Nem de Deus se respeita a Realeza…
Sou supérflua, meu fogo se desfaz…”
A terceira sussurra, já sem cor:
“Estou triste também, eu sou o AMOR…
Mas perdi o fulgor como vocês…”
Foi a vez da ESPERANÇA – a quarta vela:
“Não desiste ninguém, que a vida é bela!
E acendeu novamente as outras três!
(Dedé Monteiro)
Sentimento coletado durante o XI CBA em Aracaju – SE: Não queremos que a Agroecologia diga para onde a gente deve ir. Queremos que a Agroecologia vá com a gente para onde a gente for – Kota Malungi
Quero ser ponte, não esteio
Tô querendo ser ponte nessa vida
Facilitar as travessias e os encontros
Sentir a água passar embaixo
Feito tempo que nunca nasce pronto
Que a cada ponto, oferta um novo conto
Quero ser ponte
Sentir a leveza da brisa
O suspiro de estar suspensa
Propensa a balançar
Mas nunca desmoronar.
Te quero ser ponte
Travessia e travessura de vida plena
E como quem sedento e molhando-se, bebe em fonte
Encontros a goles longos, deleitosa e serena
E numa prosa solta
Aproveitar o encontro das palavras
Que entoam histórias
Constroem a rima
Que para além do encontro
Guardam registros
Memórias…
Daquelas que ficam na mente
E outras que colorem papéis, partilhados com nossa gente!
E dali, quem sabe sabor saber
De grafias muitas, rabiscos e risos
Por entre lembrar se perder
E em caminho feito
Perdidos nos acharmos
E de rebrote e sombras que reavivam o peito
Outros mais caminhos caminhar e lembrar:
Gente nossa, em comboio, festas, caravanas
Congadas, folias, jongos e calangos
A resiliência se fortalece no alegrar
(Patricia Tavares e Leandro Lopes)
Sem ousadia e poesia não fazemos agroecologia!
Mesmo que muitos planos tenham sido adiados – encontros, projetos, essa acolhida, a construção de uma organicidade… A comunicação virtual mais uma vez nos aproxima e permite que possamos fazer um encontro quente, sentir de perto cada um e uma e encaminhar o que for possível por agora, para que possamos tecer outros sonhos para outras horas.
E para seguir em roda, vamos acender a fogueira – sentir sempre aquele calor gostoso…
Para conhecer e sentir essa história em imagens acesse e assista esses dois vídeos que contam e cantam nossa história: