A demanda global de alimentos deve crescer 70% até meados do século devido ao crescimento da população para 10 bilhões de habitantes e ao desejável e esperado aumento do consumo dos cerca de um bilhão de famintos hoje existentes. A ONU prevê que, por esta data, a população mundial deverá estabilizar-se e deixar de pressionar a capacidade produtiva de alimentos do planeta. Por outro lado, a tendência dominante na mudança do perfil de consumo alimentar mundial aponta para o agravamento das manifestações de subnutrição específica (carências de vitaminas e sais minerais) que hoje afetam dois bilhões de pessoas e de sobrepeso e obesidade, que hoje afetam outro (às vezes os mesmos) bilhão.
No Brasil, apesar dos sucessos dos programas dos governos FHC, Lula e Dilma, ainda existem perto de 12 milhões de famintos, mas não se sabe a incidência dos casos de subnutrição específica e a porcentagem das pessoas com sobrepeso ultrapassa os 50%, com 15% de obesos.
O desafio, no mundo e no Brasil é a garantia de uma produção suficiente e diversificada para permitir uma mudança no perfil de consumo para que seja adotada uma dieta alimentar adequada. Será necessário educar a população para consumir mais frutas, legumes e hortaliças e assegurar a oferta destes alimentos na escala e preços adequados. Será necessário, até como política de saúde pública, reduzir o consumo de carnes vermelhas e produtos industrializados, de açúcar e de sal. Estas mudanças vão à contracorrente do modelo de consumo que vem se generalizando no mundo e no Brasil, marcado pela dieta do “fast food”, centrada no trigo e na carne de gado.
Atualmente considera-se que a produção mundial de alimentos é suficiente para disponibilizar uma nutrição adequada para todas as pessoas do mundo, mas existe uma distribuição desigual entre países e ente setores da população de cada país. A pobreza é o principal fator de fome e de subnutrição específica nos dias de hoje e as flutuações dos preços dos alimentos no mundo, devido a impactos climáticos, guerras ou aumento dos custos de produção tem efeitos imediatos no aumento da fome. Por outro lado, a crescente industrialização dos alimentos provoca perdas em escala pouco reconhecida, mas que atinge mais de 1/3 de tudo que é produzido pela agricultura.
Nas próximas décadas vai ser necessário aumentar a produção e a diversificação dos alimentos, diminuir as perdas entre a produção e o consumo e garantir preços acessíveis para todos de forma a que seja viabilizado o direito humano à alimentação proclamado pela ONU.
Como realizar este objetivo estratégico é talvez a questão mais significativa para o futuro da humanidade e do Brasil. Desde logo, do ponto de vista nacional, temos as condições para lograr um elevado grau de autossuficiência na produção de alimentos, garantindo a soberania alimentar do país. Não é isto que estamos fazendo nas últimas décadas, pois produzimos umas poucas commodities para o mercado internacional enquanto a produção alimentar vem caindo e passamos a importar cada vez mais arroz, trigo e feijão. A estratégia de “aproveitar vantagens comparativas” para a nossa produção e confiar que poderemos sempre comprar as nossas necessidades alimentares no mercado internacional ignora a crescente instabilidade deste mercado e a perspectiva de déficits crescentes na produção mundial dos alimentos. Os países mais ricos do mundo, os da União Europeia e os Estados Unidos, nunca deixaram de garantir primeiro a produção para o consumo de suas populações para depois colocar seus excedentes no mercado internacional, mesmo a custa do mais brutal protecionismo. É de bom senso seguir a mesma estratégia. Isto implica em colocar mais ênfase e estímulos na produção de gêneros alimentícios e menos na produção das poucas commodities que vão ocupando o nosso espaço agrícola: soja, cana, eucalipto, laranja, café, carnes.
Expandir a produção agrícola só pode ser feito através de dois mecanismos: aumento da área plantada ou aumento dos rendimentos das culturas. Nos últimos sessenta anos a segunda opção prevaleceu sobre a primeira, mas as áreas cultivadas não só cresceram significativamente como ainda representaram uma importante contribuição para a produção mundial. No entanto, esta opção está cada vez mais restrita a situações excepcionais, pois a área agricultável está se esgotando rapidamente e as “últimas fronteiras” agrícolas já são constituídas de terras mais vulneráveis em ecossistemas mais frágeis. O uso inadequado deste tipo de terras tem levado a uma crescente desertificação em todo o mundo, inclusive no Brasil. É possível expandir a ocupação de solos para a agricultura aqui e em outros lugares, mas em sistemas mais frágeis as escolhas tecnológicas têm que ser muito mais cuidadosas para que se possa garantir um manejo sustentável dos recursos naturais. A ocupação recente do cerrado, da Amazônia e da caatinga sem estes cuidados tem levado ao surgimento de gigantescas áreas degradadas onde não se cultiva nem cria mais nada e mesmo a recuperação da vegetação nativa se dá com dificuldades.
O aumento dos rendimentos das culturas ocorreu pelo crescente uso das técnicas da chamada “revolução verde”: adubos químicos, variedades melhoradas, agrotóxicos e maquinário. A ampliação da irrigação também teve papel significativo neste processo de tal forma que hoje 70% de toda a água doce do mundo é utilizada na agricultura e a produção irrigada representa 1/3 da produção total no mundo. No entanto, esta opção está se esgotando dia a dia por várias razões. Após décadas de aumentos contínuos do rendimento médio das culturas, da ordem de 3 a 4% ao ano, esta taxa caiu para 0 a 1% nos últimos 20 anos. É preciso também lembrar que as técnicas da revolução verde foram aplicadas sempre nas terras de melhor qualidade e em ecossistemas mais favoráveis e seus resultados em condições mais difíceis foram sempre pouco relevantes para não dizer desastrosos.
A última aposta da ciência agronômica para aumentar os rendimentos foi a introdução dos cultivos transgênicos, mas está provado que esta alternativa não foi mais produtiva em relação aos sistemas convencionais, persistindo o problema da busca de métodos e práticas que aumentem significativamente os rendimentos das culturas.
No Brasil a generalização do uso das técnicas da revolução verde se deu com uma grande defasagem em relação às agriculturas desenvolvidas, mas o mesmo efeito de esgotamento do modelo vem se fazendo sentir, inclusive de forma mais acentuada dadas as nossas condições de agricultura tropical.
A agricultura da revolução verde, seja ela a do agronegócio (empresarial) como a do agronegocinho (agricultura familiar), depende de recursos naturais não renováveis (petróleo, gás, fósforo e potássio) e dos renováveis (solos, água, recursos genéticos). Ela também depende das variações climáticas. Todos estes fatores jogam contra a sustentabilidade deste modelo produtivo.
A era do petróleo barato acabou há tempos e hoje o preço do barril é cem vezes maior do que nos anos sessenta. O esgotamento das reservas de mais fácil extração já está em curso desde o fim do século passado quando foi atingido o pico de produção mundial. Novas fontes foram descobertas desde então, prolongando o uso deste combustível fóssil por mais alguns anos, mas elas são muito menos produtivas e mais caras. É o caso tanto das areias betuminosas no Canadá e do shoal gas nos Estados Unidos como dos poços ultra profundos no Brasil. A pressão do aumento dos custo da energia fóssil sobre a produção agrícola não pode ser minimizada, pois esta depende de petróleo e gás para mover o maquinário, produzir adubos nitrogenados e agrotóxicos.
A propaganda nacionalista afirma que podemos ser independentes dos combustíveis fósseis para transportes, pelo menos, através da produção de biocombustíveis. Estudos revelam que o álcool de cana tem um balanço energético que só é vantajoso em relação aos combustíveis fósseis se uma série de condições for respeitada, o que não é economicamente rentável, nos preços atuais dos fatores. Por outro lado, os biocombustíveis competem com a produção alimentar e tem sido um fator importante na elevação dos preços dos alimentos no mundo. Este não é um bom caminho para enfrentar a crise do modelo agrícola.
Se o petróleo está escasseando o fósforo está em franco processo de esgotamento em todo o mundo, desde 1989. Isto faz com que os preços dos adubos disparem ano a ano, com pouca relação com as crises mais gerais da economia, pois a produção convencional depende deste produto e a disponibilidade do mesmo vai caindo. O Brasil está tentando aumentar a sua produção interna, pois depende em 70% de importações, mas com pouco resultado até agora.
NO que tange os recursos naturais renováveis, o impacto negativo do modelo convencional vai acelerando o processo de sua inviabilização:
Um quarto de todos os solos agricultáveis do mundo está em processo de degradação mais ou menos avançado enquanto a produtividade de perto da metade destes solos está em queda. 40% destes processos derivam do impacto negativo do uso de produtos químicos enquanto o resto advém da erosão, compactação e encharcamento. No Brasil não há estatísticas abrangentes sobre perdas de solos, mas os milhões de hectares de terras abandonadas para qualquer tipo de exploração nos biomas do Cerrado, Caatinga e Amazônia é um grande indicador do quanto estamos destruindo nossos solos. Habituados à uma grande disponibilidade de terras pelas dimensões do país tendemos a não nos preocuparmos com a degradação das terras, pois sempre houve novas fronteiras a desbravar.
A super-exploração de aquíferos, rios e lagos para irrigação está esgotando os recursos hídricos em ritmo acelerado em várias partes do mundo como são exemplo o aquífero Ogallala e o rio Colorado nos Estados Unidos, o rio amarelo na China ou o lago Aral na antiga União Soviética. No Brasil estamos longe deste esgotamento, mas em compensação, o aquífero Guarani está em processo de crescente poluição por agrotóxicos e adubos químicos.
Para terminar, a agrobiodiversidade está em continua degradação com a desaparição de milhares de variedades de centenas de espécies domesticadas pelos agricultores familiares ao longo dos 10 mil anos de existência da agricultura. Este estreitamento da base genética das culturas leva a uma crescente vulnerabilidade a ataques de pragas, doenças, invasoras e fungos e cobra um uso cada vez mais exagerado (e ineficiente) de agrotóxicos. O Brasil tornou-se o recordista mundial no uso de agrotóxicos, inclusive de uma vintena deles proibidos em todo o mundo e nem por isto está conseguindo controlar as pragas novas e antigas que assolam a produção nacional. Não há estatísticas sobre as perdas de culturas com pragas, fungos e invasoras no Brasil, mas nos EUA os dados apontam para um aumento das perdas desde o imediato pós guerra quando o uso sistemático de agrotóxicos teve o seu início.
A agricultura convencional é responsável por pela emissão de 18% dos gases de efeito estufa além de provocar a maior parte dos desmatamentos que representam também
18% da emissão dos GEE. Se computarmos as emissões provocadas por todos os fatores listados na cadeia alimentar da porteira à mesa do consumidor chegaremos a quase 50% de responsabilidade deste setor agroalimentar na emissão de GEE. A situação do Brasil não difere desta estatística mundial a não ser pelo provável peso maior dos desmatamentos nas emissões de GEE. As consequências do aquecimento global sobre a agricultura são bem estudadas e os piores impactos cairão sobre os países de clima tropical como o nosso. Podemos esperar de imediato a exacerbação da instabilidade climática com secas mais longas e mais duras, inundações e geadas mais frequentes e mais intensas. Vai ser preciso buscar alternativas que permitam mitigar o impacto da agricultura sobre o clima bem como adaptar a agricultura às mudanças climáticas.
A insustentabilidade vai se revelando nos crescentes custos de produção neste modelo do agronegócio. Nos países modelo dos sistemas convencionais de produção como os EUA e a União Europeia, o endividamento da agricultura é generalizado e o gasto público com subsídios tem valor equivalente, em média, ao valor total da produção. No Brasil também o endividamento do agronegócio e o do agronegocinho é cada vez mais grave (26 bilhões e 6 bilhões de créditos impagáveis, respectivamente) e o recurso às anistias e aos parcelamentos e reduções dos passivos tornou-se recorrente. Esta exigência de gasto público para sustentar o insustentável só faz crescer, mas, se os governos do primeiro mundo tem disponibilidade para esta política no Brasil o seu custo seria proibitivo.
De toda esta análise sobressai uma conclusão: o modelo de produção baseado em monocultivos de grande escala apoiados no uso de maquinário e insumos químicos é inviável em todo o mundo e, em particular, no Brasil. Se queremos garantir a segurança e soberania alimentares do país no futuro teremos que buscar outra alternativa produtiva.
A alternativa sustentável para a produção de alimentos está consagrada no mundo como a agroecologia, definida como o manejo integrado dos recursos naturais renováveis (solos, água, agrobiodiversidade e biodiversidade). Pesquisas em várias partes do mundo (Academia Nacional de Ciências dos EUA, Universidade de Sussex, FAO, IASTD, UNCTAD, entre outras) vêm confirmando o que a experiência de inúmeras ONGs e entidades dos movimentos sociais do campo brasileiro já vêm constatando: a agroecologia é tão ou mais produtiva do que a tecnologia do agronegócio e do agronegocinho, conserva e recupera os recursos naturais, não polui solos, rios e o ar, não contamina produtores e consumidores, é mais econômica, não emite gases de efeito estufa e é mais resistente e resiliente às variações climáticas. A agroecologia só não bate o modelo do agronegócio na produtividade do trabalho, mas isto é uma vantagem e não um problema em um país com disponibilidade de mão de obra. A agroecologia é perfeitamente adaptada às condições da agricultura familiar e muito pouco às condições do agronegócio de modo que uma visão de futuro da agricultura sustentável brasileira implica em uma ampliação e radicalização da reforma agrária de modo a reverter o atual perfil de distribuição de terras no país.
A adoção generalizada da agroecologia é a alternativa em que apostou a CNDRS II e o Plano deve ajustar as propostas aprovadas para permitir o início de um processo de transição do conjunto da agricultura familiar na direção da agroecologia bem como iniciar um processo de controle dos impactos negativos do agronegócio no meio ambiente, na sociedade e na economia visando a sua paulatina substituição pela agricultura familiar agroecológica.
(*) Jean Marc é da AS-PTA e membro do CONDRAF e da CNAPO.