Antes da celebração de encerramento do III Encontro Nacional de Agroecologia, que ocorreu às margens do Rio São Francisco em meio ao belíssimo pôr do sol, com uma mística repleta de músicas, confraternizações e benzedeiras, ocorreu a entrega da Carta Política do III ENA ao Ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. O documento foi construído coletivamente pelos mais de 2 mil participantes, fruto dos relatórios e discussões das atividades programadas, refletindo o Brasil Agroecológico almejado pela diversidade de movimentos da ANA. O documento apresenta respostas às crises atuais que a sociedade enfrenta.
A avaliação geral expressa na Carta é a agroecologia como opção estratégica cada vez mais compreendida e difundida por diversos setores da sociedade, na perspectiva de um modelo com alimentação saudável, saúde coletiva, preservação do meio ambiente, trabalho com distribuição de renda e oportunidade aos jovens, dentre outros elementos. O direito ao acesso a terra e ao território aparece como a principal necessidade das diferentes identidades étnico culturais rumo às mudanças estruturais que viabilizam a ampliação de escala das experiências agroecológicas. As mulheres reafirmaram com ênfase que “sem feminismo não há agroecologia”, e o repúdio aos transgênicos foi ovacionado pela plenária: “Dinheiro público não deve ser usado para compra de sementes transgênicas”, diz a carta aplaudida por todos.
Os grandes mercados alimentícios, o monopólio da comunicação, dentre outras formas hegemônicas que compõem o agronegócio no país em aliança com Estado Brasileiro, estão sendo rompidos graças às mobilizações da sociedade civil. “O agronegócio constitui hoje o principal obstáculo para a agroecologia, e está cada vez mais clara a incompatibilidade de convivência desses modelos. O Brasil não pode continuar sendo o maior consumidor de agrotóxicos no mundo”, afirma a Carta. Os participantes do III ENA reivindicam o fim da pulverização aérea e o banimento de agrotóxicos proibidos em outros países, pois é “uma questão de saúde pública e segurança nacional” devido aos muitos casos de intoxicação, câncer, suicídios, alterações hormonais, impactos ao ambiente etc.
O acesso e gestão das águas foi outra pauta em destaque, destacando não só a sua essência de bem comum público mas também denunciando os projetos que vêm impactando diversas populações. Por outro lado, políticas públicas de estocagem de água, como as cisternas de placa no semiárido brasileiro em parceria com a sociedade civil, foram elogiadas. O projeto de perímetro irrigado na Chapada do Apodi, que prejudica a vida de milhares de famílias no Rio Grande do Norte e Ceará, foi mais uma vez contestada: “Fomos completamente expulsos das nossas terras, esse modelo de perímetro irrigado vai destruir os assentamentos. Tivemos em Brasília duas vezes, mas as promessas de lá nunca foram cumpridas. O governo nos garantiu que o projeto seria revisto, então o que nos resta é lutar pelo nosso território. Por que para o agronegócio tudo sai rápido e para a agricultura familiar não chega? Só chega destruição, veneno, etc?”, criticou Francisco Edilson Neto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi (RN).
A expansão de grandes empreendimentos (hidrelétricas, ferrovias, exploração de minérios, etc) têm resultado em disputas territoriais que implicam em violências policiais por parte do Estado, que tem atuado como parceiro das grandes corporações, aponta a carta. Nesse contexto, os assassinatos de lideranças, a criminalização dos movimentos sociais e ambientalistas e a sistemática devastação da biodiversidade têm aumentado, assim como o emblemático fortalecimento dos movimentos de resistência e propostas de alternativas.
Normas sanitárias, abastecimento e construção social de mercados, financiamento, plantas medicinais, agricultura urbana, comunicação, assistência técnica, ensino e pesquisa, foram alguns dos temas também tratados na carta, assim como suas respectivas críticas e propostas. “Reafirmamos nosso compromisso e disposição de luta pela transformação da ordem dominante nos sistemas alimentares”, conclui. Também foram entregues ao governo diversas moções e cartas, dentre elas a dos povos indígenas com a assinatura de lideranças de quinze etnias.
As respostas do governo federal
De acordo como o Secretário Nacional da Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Valter Bianchini, é muito acertada a luta das mulheres na agroecologia, já que, em quase 10 mil anos da agricultura, elas são as responsáveis históricas pela coleta de sementes, a criação de animais e uma relação mais harmônica com a natureza. Na semana que vem a presidente Dilma lançará o Plano Safra com novidades nas políticas de crédito, de forma a atender melhor a agricultura familiar, anunciou.
“Temos de até 2015 universalizar a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) a todos os agricultores que estão na agroecologia. Com as chamadas vamos iniciar um programa de construção do conhecimento, redes de agroecologia, mais de 2 mil técnicos e uma rede de pesquisadores. Com avanços também na pesquisa e mais comprometimento no trabalho com a diversidade, as mulheres e juventudes, todas as iniciativas da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Queremos horizontalizar os conhecimentos, rumo a um modelo que futuramente será responsável pela segurança alimentar”, disse.
O ministro Gilberto Carvalho recebeu a carta dos movimentos afirmando que as propostas do campo agroecológico integram um “programa inteiro” de governo e, por essa razão, são pesadas ao Estado no sentido da sua responsabilidade para respostas efetivas às importantes questões cobradas. Segundo ele, o atual modelo de desenvolvimento está esgotado por ser baseado no consumismo e em princípios mortais para o futuro da humanidade e precisa ser revisto corajosamente.
“É um novo modelo de sociedade que precisamos implantar nesse país. É muito importante que vocês tenham essa consciência com papel inovador de vanguarda e profético que representam ao afirmar na palavra e não só no cultivo da terra, nas propostas que vocês apresentam. É de fato um enorme avanço e um sonho de sociedade que queremos e desejamos. E esse encontro, de alguma forma, prefigura o modelo de sociedade que nós sonhamos, porque vocês não falam só do cultivo da terra, vocês falam da relação com a natureza, com o alimento, a saúde, ambiente, e com a pessoas – a mulher, a criança, o outro”, destacou
Mas sem uma reforma política essa carta, que o ministro se comprometeu a entregar à Presidenta Dilma, não se tornará realidade, complementou Carvalho. Para ele, as propostas são de uma grande bondade mas ainda não representam a maioria dos nossos cidadãos. “A vanguarda precisa fazer uma estratégia de maiorias. Sem realizarmos a reforma política essa cartar não vai se tornar realidade. Não há correlação de forças hoje para que essa carta se torne realidade. As questões estruturais, enquanto houver a bancada dos latifundiários como maioria no Congresso Nacional, não conseguiremos avançar como precisamos. Precisamos garantir um Congresso que de fato represente a maioria dos brasileiros e não a minoria do poder econômico”, ressaltou.
O ministro anunciou ainda que os moradores de Apodi (RN) não ficarão desamparados e fará uma visita ao território, junto a outros ministros de Estado, para conversar novamente sobre o assunto. Respondendo às críticas dos movimentos em relação às prisões de agricultores envolvidos em falsas denúncias no Paraná sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Carvalho afirmou que o programa é fundamental para o governo. “O PAA é sagrado para nós, é o melhor programa que construímos até hoje, e teve gente que acabou sendo presa injustamente”, disse.
O III ENA foi encerrado com muita animação e tendo cumprido o objetivo de fortalecimento da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) como uma rede nacional, que mobiliza e atua politicamente para Cuidar da Terra, Alimentar a Saúde e Cultivar o Futuro.