Após seis meses da tragédia crime envolvendo a mineradora Samarco/Vale/BHP com o rompimento de sua barragem de resíduos tóxicos no Rio Doce, em Minas Gerais, todos continuam impunes e a empresa não pagou nenhuma multa acionada pelo Ministério Público ou o Ibama. No mês passado foi realizada uma Caravana Territorial na Bacia do Rio Doce envolvendo dezenas de organizações para coletar as denúncias e anúncios dos atingidos margeando o Rio desde a barragem ao litoral capixaba. Agricultores familiares, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, dentre outros povos atingidos, relataram as dificuldades que enfrentam desde novembro de 2015.
Para falar sobre a influência da ciência nesse contexto e analisar as impressões provocadas durante a caravana, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), que também participou da organização da atividade, conversou com Marcelo Firpo, da Fiocruz. Segundo o pesquisador, as pesquisas oficiais contratadas pela empresa e o governo são acríticas e tendem a ser direcionadas aos interesses dos contratantes e não dos atingidos. Para ele, é preciso levar em consideração os conhecimentos tradicionais dos povos afetados e potencializar suas experiências agroecológicas locais para o restabelecimento da vida no Rio Doce.
De que forma a ciência tem influído no Rio Doce?
É preciso denunciar e transformar a ciência que contribui e é também base dessa tragédia. Esse modelo de ciência especializada, acrítica, que não contextualiza, tecnicista e que trabalha sem uma dimensão ética, acaba tendo implicações de conflitos de interesses sérios. Trabalha diretamente com as grandes corporações e é financiada por elas, com profissionais, pesquisadores e professores dando consultorias e assumindo uma perspectiva não crítica ao modelo da mega mineração. São formados em diferentes áreas da biologia, engenharia, ecologia e das próprias ciências sociais um conjunto de profissionais que vão atuar nos processos de licenciamentos e consultorias formando uma base totalmente acrítica, descontextualizada. Existem empresas e profissionais que quase repetem como padrão suas avaliações e relatórios de impacto ambiental, e isso empobrece muito a atuação das universidades e seus profissionais. É uma vergonha e lamentável que exista no Brasil um prêmio Capes/Vale de sustentabilidade, existem várias associações científicas protestando contra isso. A CAPES é uma instituição pública muito importante para a ciência no Brasil, e a pós graduação não pode num momento tão trágico desse crime continuar se posicionando dessa maneira.
Mas felizmente existe também um anúncio que caminha para outro modelo de ciência. desse caminho vem sendo trilhado por diversas associações e entidades científicas de vários campos que foram fundamentais no Encontro Diálogos e Convergências, e continuam sendo fundamentais nas caravanas territoriais e nessa caravana do Rio Doce em particular. Temos a presença da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), a Associação Brasileira de Antropologia e vários grupos de pesquisa militantes que vêm produzindo contra relatórios hegemônicos, como o Grupo Gesta (Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais) da UFMG, e o Grupo Poemas (Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade) da Universidade Federal de Juiz de Fora, junto a UERJ e a UFRJ, o Tramas da UFC. Temos também grupos militantes que estão produzindo mapas de conflitos e experiências agroecológicas, a Fundação Oswaldo Cruz e outras associações que de alguma maneira têm sido bastante combativas. Todas essas associações e grupos estão envolvidos na produção de várias notas de solidariedade aos atingidos e repúdio contra os responsáveis dessa tragédia crime.
Temos uma presença marcante de vários setores da ciência que envolve geógrafos, agrônomos, cientistas sociais, profissionais de saúde, engenheiros e economistas, que não são os hegemônicos que apoiam essa ciência da tragédia e sustentam esse modelo de desenvolvimento. Essa ciência contra hegemônica é a que esteve presente junto à caravana e trabalha numa perspectiva militante, engajada, da ecologia de saberes, que reconhece a complexidade e diversidade de saberes. Trabalha junto aos movimentos sociais, comunidades e camponeses, indígenas, quilombolas. Reconhecemos a importância estratégica dos saberes dessas comunidades, e tivemos ao longo da caravana verdadeiras aulas de vida, conhecimentos, sabedorias de pessoas simples, camponeses, indígenas, quilombolas. Depoimentos de uma riqueza, dignidade e grandiosidade que nos ensinam como recuperar nascentes, fazer uma agricultura familiar agroecológica com esquema de piqueteamento e de pastagens evitando certos tipos de gramas que são verdadeiros problemas em termos de erosão, impermeabilização e capilarização da água nos solos. Encontramos agricultores, por exemplo, trabalhando com o projeto Plantadores de Água em recuperação de nascentes. Esse conhecimento e riqueza, em que talvez a agroecologia seja a expressão máxima desse encontro, permite a articulação de um conhecimento científico que reconhece seus limites e incertezas, trabalha numa perspectiva integradora e de articulação de saberes e coloca o saber científico avançado reconhecendo a complexidade da realidade em diálogo com um conjunto de saberes, lutas e questões éticas fundamentais do nosso tempo. Contribui para denunciar a tragédia e produzir contra relatórios muito competentes poderosos porque estão antenados na realidade articulados às lutas, trabalhando junto denúncias, soluções e alternativas que foram colocadas pela caravana.
Saíram relatórios oficiais da Samarco, e quais são os diagnósticos? O que esses contra relatórios anunciam?
Temos pouquíssimos relatórios da Samarco/Vale mostrando uma estratégia de não transparência e de articulação fragmentadora junto a certas instituições e órgãos públicos, assim como se fragmenta a relação com as comunidades produzindo acordos individuais e evitando o diálogo com organizações coletivas, populares e movimentos sociais. Então temos aproveitado nesse contexto a produção de relatórios como o do Grupo Gesta da UFMG, da professora Andrea Zhoury, e o do Grupo Poemas da UFJF, tendo a frente o prof. Bruno Milanez. O Poemas produziu um relatório extremamente detalhado e importante para entendermos as raízes da tragédia e o problema da mega mineração no Brasil. O crescimento gigantesco das megas minas com o problema da redução de preço dessa commoditie de ferro que, ao invés de reduzir, continua a aumentar a produção para manter lucros ao mesmo tempo que são reduzidos investimentos em segurança e gestão ambiental.
Temos vários relatórios, outros continuam a aparecer e a caravana certamente irá contribuir para ações do Ministério Público Federal e Estaduais, que são aliados das críticas e e buscam a invalidação do acordo vergonhoso que foi celebrado entre a Samarco, a Vale e BHP com o governo federal, que coloca a defesa dos interesses econômicos da empresa de maneira muito clara orientada para o retorno das atividades produtivas. Então a gente pretende que os relatórios a serem produzidos pela Caravana, nossa carta política e um dossiê de denúncia internacional de violação de direitos humanos da caravana a ser ainda produzido possam circular pelo país e pelo mundo. E vamos produzir vários materiais pedagógicos, fotos, vídeos, que sirvam de atualização permanente da memória do desastre crime e das iniciativas que continuarão nos próximos anos de luta dos atingidos e de busca por alternativas por outro modelo de desenvolvimento e de sociedade.
Há alguma estimativa científica de quanto tempo levará para o Rio Doce retomar sua vida?
Não existem indicativos claros, existem muito mais incertezas, mas certamente será um longo tempo. Esse é um dos problemas desse acordo feito entre o governo federal e a Samarco, Vale e BHP, que coloca valores e percentuais em cima de uma enorme ignorância e incertezas a respeito dos reais impactos. Existem impactos que só serão melhor esclarecidos dentro de meses ou anos de muitos estudos e conhecimento de como essa violenta poluição e contaminação está afetando não só a população de espécies animais, mas também o conjunto de vida das populações ribeirinhas que dependem do Rio Doce. Então a gente tem, por exemplo, a suspeita de que algumas espécies típicas da região serão extintas. Sabemos que mesmo o alto do Rio Doce, na área que não foi atingida pela lama, é afetada pelo fato de que existem espécies que realizam a piracema e sobem os rios para se reproduzir. A turbidez e poluição encontram-se tão altas no momento atual e isso continuará a impedir por muito tempo a existência de vida dentro do rio. Então ainda precisamos de muito esclarecimento. Sabemos, por exemplo, que havia índices elevados de contaminação por metais pesados como o arsênio e outros antes mesmo do rompimento da barragem de Estudos da Universidade Federal de Viçosa apresentam isso, principalmente a partir da zona em que a mineração vem sendo realizada há muitas décadas. Ou seja, há uma clara relação entre a mineração e a poluição dos rios.
O rio também já vinha sendo degradado em função dos agrotóxicos, da poluição química, da falta de saneamento básico nas cidades e na zona rural.Então já existiam vários problemas, ea tragédia agravou esses problemas, então para recuperar o rio não sabemos quanto tempo vai ser necessário. Precisamos não somente de estudos independentes, mas também de iniciativas que apóiem ações autônomas e independentes de agroecologia, do uso sustentável do solo, de recuperação de nascentes, um trabalho de recuperação de matas nativas nas encostas dos morros, de saneamento tanto rural como nas cidades. Existe muito trabalho a ser feito e essa caravana mostrou que é totalmente possível, e já existem várias iniciativas em andamento, não é coisa do futuro, já está acontecendo. Precisamos caminhar nessa direção, cercando nascentes e incentivando outras práticas sustentáveis e mais humanas e justas de produção na agricultura dentro da perspectiva camponesa e agroecológica. Agora, tais iniciativas não podem ser controladas pelas empresas da mineração, porque senão faremos mais do mesmo, continuaremos plantando as mesmas sementes que nos levaram à tragédia, que é a tragédia de um progresso ilusório, quando precisamos das sementes de uma outra sociedade, de um outro modelo de economia e de relação com a natureza, mais solidária. Isso também exige outro modelo de ciência conectada com a vida, a ecologia e as lutas sociais.