Para falar sobre a luta da agricultura familiar na América Latina, o colombiano Pedro Guzman, membro da coordenação do Comitê Diretivo Latinoeamericano da Coalização dos Povos pela Soberania Alimentar (PCFS), criticou a falta de participação das populações tradicionais e camponesas nas mesas de decisões internacionais entre os países. Sua organização foi criada em 2003, em Bangladesh, e a partir de 2013 começou a atuar na região em 12 países, após um acordo no Chile, na defesa da soberania alimentar.
A entrevista concedida a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) ocorreu durante o XV Encontro Regional de Agroecologia Nordeste (ERA), realizado em Bananeiras, na Paraíba, entre os dias 20 e 22 de abril. Na conversa ele fala sobre a entrada dos transgênicos na região, e explica algumas das razões do consumo intensivo de agrotóxicos nesses países.
Você falou durante o evento sobre a falta de participação dos povos nas decisões políticas em relação ao modelo de desenvolvimento dos países. Pode nos explicar melhor?
Estamos muito preocupados pela situação que está reinando neste momento por trás do Acordo do Milênio, que acabou oficialmente neste ano mas muitas das suas metas não foram cumpridas. Muitas organizações da sociedade civil reclamam das instâncias de decisão dos governos e dos índices de desenvolvimento que não levam em conta a desnutrição infantil, a condição de pobreza, a inseguridade alimentar das comunidades indígenas e camponesas de todo o mundo. Há um conjunto amplo de negociação de todas as agências das Nações Unidas junto aos governos discutindo quais os objetivos e quais governos para um desenvolvimento sustentável. Mas nós mantemos uma preocupação muito forte sobre o que significa esse desenvolvimento sustentável que os governos estão promovendo, quando na verdade não há um compromisso real por parte das multinacionais e corporações de todo o mundo a reduzir a emissão de carbono para se prevenir ou mitigar as mudanças climáticas. A evitar as experimentações com transgênicos e forçar governos a implementar sua comercialização de com o livre comércio, em detrimento das sementes locais e a produção de alimentos nos países. Esses objetivos sustentáveis em temas específicos da alimentação e mudanças climáticas são muito prejudiciais, então estamos trabalhando uma aliança com plataformas internacionais para seguir denunciando e reclamando que não há suficiente participação das organizações e movimentos sociais. Os acordos estão sendo tomados unicamente pelos governos com muito baixa participação da sociedade civil, e estão seguindo o que as corporações e multinacionais estão solicitando.
Quais são os pontos mais e menos críticos no cenário Latinoamericano em relação à soberania alimentar?
O tema soberania alimentar no contexto atual não é favorável aos povos americanos. Alguns governos estão dando mais atenção ao tema, como a Venezuela, Cuba, Equador enquanto há casos muito graves como a desnutrição infantil no Haiti e outros despercebidos no litoral do pacífico. Colômbia, Peru, Paraguai e Bolívia têm índices muito graves de desnutrição infantil e inseguridade alimentar, cuja causa é a produção de transgênicos e as imposições dos tratados de comércio para os países não produzirem seus próprios alimentos e comprá-los de terceiros em detrimento das comunidades rurais.
Na Colômbia a ONG Oxfam lançou um estudo denunciando que o tratado de livre comércio com os EUA é o principal promotor do desemprego rural e o que mais afetava as comunidades camponesas. Essa globalização neoliberal que está induzindo os governos está na direção contrária aos interesses de seus povos, e está afetando cruelmente a soberania alimentar. Isto está ligado a acordos internacionais com a Organização Mundial do Comércio (OMC), que impõem suas leis de sementes e a liberalização do mercado. Primeiro com as Nações Unidas até 2015, depois com a FAO e os acordos que promovem o agronegócio. E os que tratam a agricultura familiar pautam os transgênicos e a biotecnologia junto aos governos. Mas o panorama não é tão terrível como foi há alguns anos, porque as comunidades estão tendo mais acesso a informação e isso pode ser muito útil para seguir fortalecendo a luta.
Como o Brasil, país quase continental, entra nesse cenário descrito por você?
O Brasil é um exemplo a seguir, mas sabemos que as organizações questionam os resultados das negociações que têm com os governos. As lutas, coesão social e movimentos sociais que surgiram no Brasil são um exemplo na América Latina e Caribe. Grande parte dessas organizações deu impulso às lutas sociais em diferentes regiões, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a Via Campesina, que têm uma forte raiz no Brasil. Promoveram alianças e atividades muito importantes em toda a região, e apoiam encontros internacionais latinoamericanos dando oportunidade a conhecer processos e lutas que são gerais na região. Permitem ainda um intercâmbio muito interessante de experiências.
Sei que é complicado o contexto social e político neste momento, mas o governo brasileiro tem um papel interessante na região. Não somente apoiando a política pública para a agricultura familiar de todo o continente americano, como também é um dos principais financiadores dos movimentos sociais latinoamericanos ao apoiar a Via Campesina, o Maela (Movimento Agroecológico na América Latina e Caribe), dentre outros. Esses recursos permitem a mobilidade e a luta de outras regiões. Tanto na sociedade civil como no governo, o Brasil é um ator fundamental na luta pela soberania alimentar não só na América Latina como em todo o mundo.
Você pode detalhar mais as questões que envolvem os transgênicos e agrotóxicos na região?
Alguns países europeus bloquearam o cultivo e o ingresso de transgênicos em seus territórios, inclusive aqui na América Latina. O Peru tem uma moratória de 10 anos para produção e ingresso de transgênicos, e o lobby de empresas como Monsanto e Syngenta é muito forte. Agora elas estão desenvolvendo a agroecologia e produção orgânica vendendo insumos orgânicos, estão diversificando: se não podemos vencê-los nos unimos, e se nos unimos cooptamos o mercado. A estratégia que tem o poder midiático e financeiro das mega corporações que impulsionam os transgênicos vai seguir se adaptando às realidades, por isso não podemos perder o ânimo e oportunidade de os governos estarem abertos. Precisamos lutar por mais moratórias e restrições ao ingresso de transgênicos que estão afetando muito a economia, porque os preços baixos estão afetando a produção de sementes nacionais e a alimentação. Ao desconhecermos nossos alimentos estamos comendo transgênicos, e isso está afetando a saúde de todas e todos. Esse é um problema que está muito forte em toda a América Latina, não somente no Brasil.
Em relação aos agrotóxicos, até pouco tempo a OMC disse que o glifosato é prejudicial à saúde, tanto pelos alimentos que consumimos quanto às pessoas que produzem. Esperamos que os governos proíbam a entrada de agrotóxicos, mas o lobby internacional é muito forte e está muito ligado aos governos, empresas e assistências técnicas nesses países. Então esses impactos tecnológicos como o glifosato e outros agrotóxicos chegam praticamente grátis ou a preços muito baixos aos consumidores. Continuamos na luta para promover a agroecologia como um modelo de resistência, de trabalho e de vida. Isso pode ser um primeiro passo muito interessante para denunciar outros agrotóxicos, e impedi-los de comercializar em nossos países. Precisamos fazer uma campanha forte com os consumidores para informá-los das enfermidades e danos que produzem não só no corpo, mas também no ambiente e na terra.