Por Eduardo Sá, na Carta Maior
Referência no pensamento agroecológico na América Latina, o pesquisador chileno Miguel Altieri, da Universidade de Berkeley/Califórnia e ex-presidente da Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (Socla), fala sobre os avanços da agroecologia na região. Autor de vários livros sobre o tema, Altieri defende mudanças no sistema agroalimentar para reduzir os impactos na saúde humana e no meio ambiente. O professor também se preocupa muito com a adaptação dos modelos agronômicos para resistir às mudanças climáticas no futuro.
Altieri conversou conosco durante o VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia, realizado em Porto Alegre entre os dias 25 e 28 de novembro. Mais de quatro mil pessoas passaram pelo evento, fato que reforça suas observações em relação ao crescimento da agroecologia no Brasil. Ele foi um dos palestrantes durante as atividades e lançou dois novos livros em co-autoria com sua esposa, Clara Nicholls: Agroecologia e mudanças climáticas e Desenhos agroecológicos, que trazem elementos para reflexão com experiências em diversos países na América Latina.
A questão do agrotóxico é a mais grave no contexto da produção agronômica moderna?
O problema principal é esse modelo de agricultura industrial, de monocultura em grande extensão acompanhada do pacote de agrotóxicos e que tem um impacto ecológico muito grande. É um sistema muito vulnerável às mudanças climáticas, porque não tem diversidade e mecanismos de resiliência. Então, colocar a alimentação do mundo nas mãos desse modelo, que também impacta o meio ambiente, é muito perigoso para a humanidade. Precisamos ter uma alternativa, uma proposta agroecológica que não se limite a agricultura camponesa. Defendemos que possa ser aplicada também na grande propriedade.
A agroecologia toma diversas formas tecnológicas de acordo com a escala, então é claro que os camponeses e a agricultura familiar podem apoiar porque são os responsáveis por manter a biodiversidade, as sementes crioulas e os conhecimentos tradicionais. Tem assentamentos que já não são latifúndios, mas estão nas mãos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), movimentos sociais ou setores informais. Esse é o caso da Venezuela, então você tem que fazer uma proposta agroecológica de larga escala. Não podemos pensar que todos aqueles que têm terras de mais de 200 hectares são latifundiários malditos, há muita gente boa com propriedades de 300 hectares que quer fazer uma conversão para a agroecologia.
A agroecologia é uma série de princípios que tomam formas tecnológicas diversas e dependem do contexto. Nos sistemas agrícolas de pequena escala, por exemplo, é muito fácil fazer porque estão perto da lógica da diversidade e da reciclagem. Já na grande escala é mais difícil, mas não é impossível: você pode trabalhar com corredores biológicos que cortam a monocultura, realizar sistemas agroflorestais de larga escala, sistemas de policultivos intercalados em faixas, etc. Então a agroecologia é o único modelo viável para o futuro que se pode aplicar em larga escala, porque oferece um modelo que não depende do petróleo e diversifica as propriedades com todas as suas bondades ecológicas, além de propor uma agricultura resiliente à mudança climática.
No meu mais recente livro, que trabalhei com a Socla e uma rede de pesquisas, tem toda uma metodologia e sistema que desenvolvemos para casos de eventos climáticos que afetam os agricultores. Alguns deles são menos afetados, enquanto outros mais e outros pouco. Como o caso de três furacões em 2008 em Cuba, onde alguns agricultores suportaram. Então queremos estudar quais são os mecanismos de resiliência sócio-ecológica, como os agricultores resistem e se recuperam. Precisamos de uma agricultura com estratégias de adaptação para as mudanças climáticas e o futuro. Isso reflete todas as questões das organizações sociais, as políticas agrárias e tudo mais, mas é muito mais importante como se desenham os agroecossistemas para que se adaptem às mudanças climáticas. Não é preciso somente o manejo de solo e água, mas também manejos agronômicos da biodiversidade no tempo e espaço. É preciso uma resposta técnica muito forte para isso.
Em termos de América Latina, quais são os dados no sentido das proposições? No que temos avançado nesse campo?
Cuba é o país com a proposta mais concreta, sólida e técnica na América Latina, mas isso foi por uma necessidade: a importação de agrotóxicos e petróleo, então teve de voltar-se para uma agricultura orgânica de substituição de insumos e depois uma agricultura com base agroecológica. Porque foram criando os sistemas de diversidades, essa é a última fase da transição tecnológica. Você passa primeiro pelo manejo integrando pragas, depois a agricultura orgânica com a substituição de insumos, que são orgânicos mas com monoculturas de produtores orgânicos e botânicos, e na última etapa você cria os desenhos agroecológicos com diversidade para promover as interações ecológicas necessárias para determinada proporção, etc .
E no Brasil, há um processo de crescimento da agroecologia nesse contexto?
No Brasil há propostas tecnológicas isoladas de diferentes escalas. Conheço sistemas agroecológicos de grande escala, como o Ecocitrus aqui perto do Rio Grande Sul, que produz frutos cítricos. Em São Paulo tem uma propriedade de 1.600 hectares de sistemas canaviais, pastoris, agroflorestais, etc. Existem propostas de agroecologia em pequena escala, projetos de muito tempo com ONG’s como a AS-PTA, e com camponeses em alguns assentamentos interessantes. Na questão técnica no Brasil, existem experiências mas isoladas e não servidas pelo que chamamos de faros agroecológicos. Esses pontos de interação precisam ser sistematizados, explicando por que aquelas experiências e princípios funcionam para incorporá-los em nossa proposta.
Creio que o Brasil está muito mais avançado que o resto da América Latina em tudo relacionado aos mercados alternativos, como a Rede Ecovida, que é um ponto de referência latinoamericano. E nas políticas, apesar de as pessoas daqui afirmarem que não são suficientes, é o único país que tem uma lei nacional de agroecologia no mundo. Isso é muito importante, porque é uma plataforma chave para aumentar a escala da agroecologia. O Brasil está muito avançado, tem uma grande diversidade de agricultura, permacultura, homeopatia, agroflorestas, etc. Mas há uma confusão porque muitos pensam que isso é agroecologia, só que você pode fazer uma monocultura orgânica que não tem base agroecológica. Então a agroecologia não é somente um sistema de produção, é uma ciência com uma série de princípios aplicados de uma forma tecnológica que fomenta processos ecológicos.
Quais as virtudes do modelo agroecológico e seus impactos mais positivos na vida prática?
A agroecologia tem crescido, tem uma teoria unida com a prática e os movimentos sociais que criou um nível de consciência sobre a necessidade de mudar o sistema alimentar. É o primeiro impacto do ponto de vista político, da consciência planetária da necessidade de mudanças e não somente no discurso vazio já que oferece uma alternativa. O segundo impacto é que a agroecologia tem influenciado a pesquisa científica nas universidades e centros de pesquisas, existem mudanças fundamentais nesse sentido e isso é muito positivo. O terceiro e mais importante é que agroecologia está agora nas mãos dos movimentos sociais, a Via Campesina, o MST e todos da agroecologia, como uma proposta concreta, técnica, científico-metodológica para apoiar a soberania alimentar. Na medida em que vai crescendo, você verá mudanças na saúde humana e meio ambiente. Mas você também pode ver experiências locais, onde se aplica a agroecologia de forma concreta em comunidades, e perceber efeitos positivos sobre a saúde humana, a qualidade alimentar, ambiental e uma série de parâmetros sociais, ambientais e econômicos.
Em nível local já se pode medir esses indicadores e notar claramente esses impactos.